No princípio era o peito.

8 de Janeiro, 2023

No princípio era o peito.

Quando é que um pai volta a ser criança? No dia em que fiz 31 anos, descobri que a parte do frango predileta do meu pai era a que ele me servira desde que me lembro.

Como é que pode ser? A minha mãe diz que, se um dia tiver filhos, será mais fácil entender. Passei toda a minha infância a achar que o meu pai só gostava do peito. Passei anos sem compreender como é que alguém que sempre foi de suculências, de chuchar as cabeças dos camarões, de roer os ossos às costeletas, de adorar um bom molete ensopado no molho da bifana, podia gostar da parte mais seca e desinteressante do frango. A minha vontade foi correr até à travessa, numa tentativa de reparação histórica, para lhe encher o prato de coxas e ante pernas. “Era o que faltava”, disse ele.

Passamos anos da nossa vida sem conhecer verdadeiramente as pessoas que nos deram banho, nos trataram as amigdalites, nos levaram à dança, ao futsal, aos treinos de andebol, nos levaram ao hospital a meio da noite, nos ensinaram a escovar os dentes, a fazer os trabalhos de casa, a colocar pensos higiénicos. Disseram-nos para lhes contarmos tudo mas nunca nos contaram nada. Pelo menos, nada verdadeiramente comprometedor. Quantos segredos, quantas peripécias, quantas memórias, terão os meus pais guardado para si, sem que eu possa sequer imaginar? Pedem-nos que lhes contemos tudo, que lhes digamos se precisarmos de alguma coisa, que lhes corramos para os braços quando queremos ajuda. Mas onde está o nosso colo quando também eles precisam de uma mãe? Serei eu demasiado filha para lhes poder acudir? Quando é que o direito a exigir as suas peças de frango lhes é devolvido?

Ter direito à sua estimada coxa é ter de volta a voz da mãe a pedir que não ande pela casa a correr. É ter a mão do pai pousada sobre a cabeça a fazer calor e carinho no cabelo húmido de jogar à bola na rua esburacada. “Deixa-me dar-te a tua parte preferida do frango, Papá”. É que se não me pede colo, peça-me ao menos aquilo a que tem direito e abdicou durante os últimos 30 anos.

O meu pai sempre foi fixe mas gosto muito mais dele agora. Começou a falar mais baixinho, deixou de gritar para eu ir pôr a mesa, de me pôr de castigo por causa das fitas que fazia à sopa, de arregalar os olhos quando fazia barulho a bater com os talheres. Agora, parte-me finas fatias de presunto, oferece-me copos do seu vinho caseiro, faz tábuas de queijos todas pipis como aquela que lhe fiz uma vez, não deixa ninguém levantar-se da mesa até ter arrumado sozinho a cozinha e a loiça na máquina, e não deixa dúvidas de que o legado de cozinheira e anfitriã que a minha avó há-de deixar será tomado por ele com orgulho.

Talvez seja por ainda ter o colo da sua mãe, que o meu pai ainda não esteja preparado para reivindicar as suas partes favoritas do frango. Um dia, quando chorarmos as saudades da minha avó, o meu pai será o primeiro a ser servido. Um prato cheio com tudo aquilo que deixou para nós. Palavra de filha.

Anita

(Texto publicado na edição #4 da revista Vida de Mercado.)