O lugar da mulher é na cozinha.

18 de Setembro, 2022

O lugar da mulher é na cozinha.

Trago uma novidade. O protagonismo e o domínio da cozinha sempre pertenceram à mulher. Historicamente a mulher inventou a cozinha e desenvolveu a economia doméstica, alimentando a sua família e partilhando esse conhecimento com outras mulheres. Então, porque demoram as mulheres tanto tempo a assumirem papéis de destaque nas cozinhas profissionais?

O sistema patriarcal instituiu que o homem branco providenciaria sustento em troca de serviços domésticos e sexuais. Quando a cozinha profissional se quis elevar ao estatuto de profissão respeitada, as mulheres ficaram de fora. Ou melhor, em casa. No final do século XIX, Auguste Escoffier desenvolveu um sistema de brigada de cozinha no Hotel Savoy de Londres. O objetivo era criar um sistema altamente eficaz, através de uma hierarquia dura e autoritária. A mulher ficou de fora do território profissional, embora, até hoje, continue a ser responsável pela cozinha doméstica.

Ser mulher, para além de não conferir nenhum grau de importância, significava ganhar menos e ser pouco valorizada. Para além disso, quem ficaria em casa a cozinhar, a limpar e a tomar conta dos filhos se as mulheres trabalhassem numa cozinha profissional? Quem prepararia a próxima força de trabalho?

Em Portugal, foram precisas 23 edições do Concurso Chef Cozinheiro do Ano para voltarmos a ver ganhar uma mulher e para questionarmos o quanto o nome do concurso condiciona quem concorre.

O Chefs on Fire, que arrancou ontem a sua quarta edição, tem pela primeira vez um cartaz onde a presença feminina tem uma expressão relevante. Traz ainda alguma  condescendência que, se não fosse tão cansativa, teria imensa piada (um passo de cada vez). A maioria das mulheres no cartaz são apresentadas com rising stars, mesmo que tenham quinze anos de carreira. Para o sistema, as mulheres só agora estão a começar. Mas as cozinheiras em Portugal são como o fogo, podem não ter espaço para atear uma fogueira enorme mas vão ser como brasas que teimam em não se deixar apagar.

A mulher não tem estofo para a cozinha profissional porque o trabalho é pesado, ouvi uma vez num painel de discussão sobre gastronomia onde só figuravam homens. E os sofás que arrasta para aspirar? E as carpetes pesadas que sacode à varanda? E as crianças que carrega ao colo enquanto faz só mais isto e aquilo? E as horas que passa em pé desde que acorda até que se deita? E a gestão do calendário familiar? E a organização das tarefas? E a memória para as datas dos aniversários, das reuniões da escola, dos presentes para o dia dos padrinhos, da mãe, do avô, da sogra? E a coordenação de malabarista entre a profissão e todas as dimensões da vida onde acumula carga mental e física? Para isso tem estofo.

Vivemos dependentes do capital e, por consequência, dependentes do trabalho, da estabilidade financeira e da capacidade de nos sustentarmos. Essa dependência, bem emulsionada com as estruturas sistémicas do poder patriarcal são a fonte do silêncio de milhares de mulheres que trabalham nas cozinhas portuguesas.

Herdámos hábitos de submissão e subserviência em que aprendemos a ouvir e a calar, a levar e a disfarçar a dor, a suportar e a resistir em silêncio. Dizemos que somos fortes e superamos tudo. Vemos os nossos créditos serem tomados por outros, dizemos que está tudo bem porque não queremos ser as chatas que reivindicam o respeito e a dignidade a que têm direito. Quando a pergunta é “porque não há mais mulheres na alta cozinha em Portugal”, esquecemo-nos que a resposta está no que fariam as mulheres se a sua prioridade não fosse tantas vezes tentar sobreviver. Sorrimos e acenamos, caladas e recatadas, para não acabarmos a ser “respondonas”, “demasiado altivas” ou “sem papas na língua”.

Se há tantas de nós que não reconhecem o seu privilégio, haverá outras tantas incapazes de reconhecer a sua opressão. Vou fazer o quê? No fim quem se lixa sou eu. Nem toda a gente pode arriscar perder o seu emprego. E muitas vezes esquecemo-nos de uma das mais belas obras escritas em Portugal, a Constituição.

Depois de, este mês, a propósito de uma notícia, nos termos revoltado com as atrocidades ditas por um chef sobre o papel da mulher nas cozinhas profissionais, é importante perceber que o problema não é esse chef em específico, mas um sistema que está construído para servir os interesses do capital. Preparar a nova força de trabalho é um investimento muito caro que só uma mãe poderia comportar de forma não remunerada.

Não acredito num mundo pensado só por homens da mesma forma que não acredito num mundo só das mulheres. Se estamos em busca de mudança e de produzir pensamento sobre a forma como queremos concretizar essas mudanças precisamos de um debate plural. Embora também nos faltem lugares seguros para podermos partilhar as nossas histórias, para sabermos que não somos umas cabras umas para as outras, para vermos que não estamos sozinhas, que não estamos loucas, que não nos acontece só a nós, que o que sentimos é válido e partilhado por tantas. Precisamos de discutir, debater, produzir, criar, construir, erguer, o mundo que nunca foi pensado para nós nem por nós. Temos séculos perdidos para compensar, todo o silêncio imposto, todas as vezes em que nos apagaram da história e nos obrigaram a esperar.

Do lugar do privilégio, o discurso feminista é muitas vezes visto como “mais uma a queixar-se” ou “lá estão elas outra vez”. Mas aos olhos da Constituição, esses queixumes são muitas vezes a denúncia de crimes que têm sido silenciados ao longo de décadas. Se parece que andamos sempre a bater na mesma tecla, é porque andamos.

Eu sei que a palavra feminismo assusta, foi demonizada e temos medo dela. Mas há palavras tão bonitas que não se deixam intimidar. Quanto mais plural for o nosso feminismo e a forma como vemos o mundo através dele, mais plurais seremos nós, com lugares seguros para que toda a gente possa ser respeitada, valorizada e amada.

Preciso acreditar com esperança que as coisas estão a mudar, como mudam ao trazermos as mulheres para um festival onde se cozinha no fogo. Mas a forma como os restaurantes se continuam a organizar, colocando as mulheres em serviços “menos pesados”, que requerem “delicadeza e atenção ao pormenor”, prova que o caminho é longo.

Cientes disso estão várias chefs em Portugal. Rafa Louzada do restaurante Gruta, Aurora Goy do Apego e Louise Bourrat do Boubou’s, por exemplo, optaram por ter equipas de cozinha cem por cento femininas, criando um lugar seguro para que estas cozinheiras possam evoluir sem a pressão do assédio, da violência ou do machismo.

Para o patriarcado o lugar da mulher é na cozinha, mas ai delas que saiam da esfera doméstica, que tenham protagonismo ou poder. LOL O lugar da mulher é onde ela quiser desde que esse lugar seja seguro.

Anita

PS.: deixo aqui algumas listas que, por serem incompletas, podemos continuar a construir juntas e juntos.

Uma lista para quem acha que “não há assim tantas”:

Louise Bourrat - Boubou's

Nikita Polido - Celmar

Juliana Penteado - Juliana Penteado Pastry

Alana Mostachio - VDB Bistronomie

Marcella Ghirelli - Cella Door

Noélia Jerónimo - Noélia & Jerónimo

Ana Leão - Torto

Leonor de Sousa Bastos - Flagrante Delícia

Ahn Dão Nguyen - Come to Tricky's

Isabela Cordaro - Cordaro Pizza e Vino

Mirna Gomes - Mito

Natália Pereira - Aspetta Pizzaria

Marta de Figueiredo - Estrela da Bica e Padaria Terra Pão

Rafa Louzada - Gruta

Aurora Goy - Apego

Patrícia Pombo - This is pour decisions

Renata Coelho - Adega São Nicolau, Terreiro e Taberna dos Mercadores

Marlene Vieira - Marlene, Zum Zum Gastro Bar

Marta Almendra - Cruel, Boteco Mexicano e Espécie

Liliana Guimarães - Pão da Trindade

Michele Marques - Gadanha Mercearia e Casa do Gadanha

Inês Pando - Mafalda’s

Mafalda Pando - Mafalda’s

Angélica Salvador - In Diferente

Ana Fernandes - Nonna Pasta Fresca

Leonor Barros Sobrinho - Essencial

Inês Diniz - Cozinha do Manel  

Lídia Brás - Stramuntana

Verónica Dias - Brites

Catarina Nascimento - 83 Gastrobar

Ana Guimarães - Le Dirty Lou

Tânia Durão - Atrevo

Joana Duarte - Tapisco

Natacha Meunier - Apuro

Marina Falleiros - Oh Padaria

Natacha Labastia - Umami

Ana Jorge - Padaria Norre

Leonor Godinho - Vago

Nathália Alves - Co-Lab Cozinha

Maria Lima - Aquela Kombucha

Yasmin Pinto - Brigadeiria

Maria - Nola Kitchen

Ana - Gelataria Portuense

Sara Verde - Emotivo

Ana Maio - Miss Pavlova

Sara Sá - Manna

Ana Fonseca - Pão da Terra

Stephanie Audet - Senhor Uva

Ana Rita Varanda - Já se comia Restaurante

Inês Antunes - Pizzaria Famiglia

Márcia Teixeira - Piccolo Famiglia

Joana Duarte - Kitchenette

Ana Maria Baptista - Solar Bragançano

Isabel Santos - António

Amaya Guterres - Quinta do Prazo

Anaís Almeida - Kitchenette

Joana Sousa - the Pastry Lab

Lorina Gaspar - Elemento

Inês Proença - Cafézique

Daniela da Silva - Bom de Boca

Rafaela Gonçalves - Bom de Boca

Natalie Castro - Isco

Caroline Giandália - Gastronomic / The Yeatman

Gabriela Johann - Genuíno

Livros:

Feminist Food Studies: Intersectional Perspectives, Barbara Parker, Jennifer Brady, Elaine Power, Susan Belyea

Teoria Feminista, bell hooks

Problemas de género, Judith Butler

Mulheres Invisíveis, Carolina Criado Perez

Um quarto só seu, Virgínia Woolf

A princesa salva a si mesma neste livro, Amanda Lovelace

Teoria King Kong, Virginie Despentes

Todos Devemos Ser Feministas, Chimamanda Ngozi Adichie

Cherry Bombe: The Cookbook,  Kerry Diamond e Claudia Wu

Pão das Mulheres, Mouette Barboff

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