Valeu a pena.

12 de Agosto, 2023

Valeu a pena.

Hoje, acordei com saudades do inverno.
- Claro, com este calor também eu. - dizem vocês.
Mas é mais do que isso. Às vezes, de forma um pouco aleatória, surgem-me desejos súbitos de coisas, comidas, lugares ou pessoas. Uma espécie de saudade de momentos já vividos motivada por sensações térmicas, texturas, músicas, cheiros e afins. Hoje, ao acordar, o desejo súbito de inverno chegou como uma primeira pista, uma forma de me situar e guiar até à memória que se vai desvendando aos poucos até revelar a tal saudade de algo.

Primeiro, veio a sensação de saudades do inverno, como se me apetecesse algo acolhedor, aconchegante. Depois, manifestou-se o desejo de estar confortável num sítio onde as mãos geladas vão aquecendo lentamente. E depois, aos poucos, essa saudade foi ficando cada vez mais nítida até chegar a um “já sei” em que consegui visualizar exatamente o momento a que gostava de voltar.

Há quem viaje para conhecer lugares.
Eu viajo para conhecer pessoas.

Ana Lúcia Roldão é chef do 26 Grains, uma cafetaria londrina que serve pequenos-almoços em Neal’s Yeard, um dos recantos mais coloridos e charmosos perto de Covent Garden. Em fevereiro passado, esta mulher que eu já “conhecia” da internet, cozinhou uma das refeições mais aconchegantes que comi nos últimos anos. Roldão tem o ar destemido de quem domina o que faz e um modo singular de nos fazer sentir acolhidas em pleno frenesim de Londres.

Uma parte de mim queria há muito provar a comida da Ana Lúcia, outra queria ainda mais conhecê-la e dizer-lhe que admiro o que faz. Enquanto esperava pelo pedido fiquei de olhos postos e boca aberta ao vê-la trabalhar, rodeada de mulheres, descendências diversas, numa bancada pequeníssima, com muito foco e uma calma que podia bem ser a de quem cozinha só para si num sábado de manhã.

Houve uma época, 2009 provavelmente, em que desejei muito conhecer a Sandra Faleiro. É uma atriz que admiro até hoje e a quem gostava de ter escrito uma carta ou um email a agradecer pela beleza com que presta o seu ofício. Desaconselharam-me a fazê-lo.
- Não vale a pena. - disseram-me enquanto me convenciam a evitar conhecer pessoas por quem tinha enorme admiração. E assim me demoveram de prestar singela homenagem a esta brilhante atriz.

Mas em 2023 e a caminho dos 32 anos, o que dizem os outros faz menos eco cá dentro. De maneiras que fui a Londres com o tempo contado e duas refeições obrigatórias. Uma delas, no St John, restaurante chefiado por Fergus Henderson, com uma carta exclusiva de pratos de porco. A outra, no 26 Grains, onde reinam as papas de cereais com produtos da época, as sandes e tostas indulgentes com ovos fritos na perfeição, as bebidas quentes e uma mulher admirável.

Conhecer pessoas que admiramos é tão arriscado quanto as expectativas que criamos sobre elas. Tenho tentado evitar alimentar expectativas sobre pessoas. Crio expectativas para a comida, fantasio com as cores, as formas, as texturas e os sabores, alimento a curiosidade que faz crescer água na boca. Com as pessoas prefiro ir de olhos vendados e coração aberto. Uma espécie de primeiro encontro sem pedir nada em troca, sabendo que os nossos ídolos são tão humanos e complexos quanto nós.

Hoje, acordei a desejar o inverno, um casaco até aos joelhos e um cachecol que dá duas voltas ao pescoço. Desejei esperar na fila daquela praceta ladeada de pessoas vindas de todos os lugares, ver chegar a minha vez de sentar numa das mesas corridas onde se misturam locais e turistas, demorar uns minutos a mais do que o esperado a decidir e pedir exatamente o que a mesa do lado está a comer: papas de cinco cereais, compota de ruibarbo, laranja sanguínea, iogurte e crocante de amêndoa; ovos fritos, manteiga de ras el hanout, labneh, pistachio, dukkah e pão de massa mãe; french toast de brioche caramelizado, caramelo e chocolate.

Desejei a cada prato provado olhar para a Ana e arregalar os olhos a insinuar que está divinal, tentar dizer-lhe como as suas papas me fizeram sentir mais colo que quaisquer outras, dizer-lhe que os ovos foram misto de conforto e orgasmo e que a french toast podia ser o meu pequeno almoço no natal. Depois de terminar, dar um último golo no latte com as faces rosadas e o corpo já quente, olhar para a Ana e sussurrar “obrigada, valeu mesmo a pena”. Afinal, as saudades de inverno são menos sobre o frio e mais sobre o conforto de conhecer mulheres que admiro e que cozinham para acolher.  

Anita.