Estávamos em 2015, andava eu numa das fases de proclamação e resistência da minha independência, quando deixei de comer carne e peixe. As pessoas mais próximas, deixando os queixos estatelarem-se no chão, perguntavam-se que documentário teria eu visto para tomar tal decisão.
A verdade é que não foi uma escolha. O documentário chamava-se Se um frango custa 2,85€/kg e um repolho 0,99€/kg então prefiro fazer couves no forno. A carne e o peixe eram muito mais caros do que a maioria dos legumes e o dinheiro que tinha mal chegava para o gasóleo que precisava para ir trabalhar. Para uma auto proclamada embaixadora da comida ter deixado de comer carne e peixe fez com que me começasse a questionar, com que procurasse uma razão ideológica que justificasse aquela decisão. Eu sabia que o que estava a fazer não era apenas uma consequência daquela asfixia financeira. Há muito que me cruzava com artigos sobre o vegetarianismo, o veganismo e a defesa dos direitos dos animais. O que ainda não tinha permitido soar o alarme era o meu egoísmo gastronómico. Foi aí que os documentários começaram a ter um papel fundamental na forma como ia moldando a minha visão do mundo e da comida. Quando descobri o impacto que a produção de carne e a indústria da pesca tinham para a saúde do planeta, senti que tinha encontrado a minha bandeira. A miúda que na adolescência tinha sido porta-voz de um Ecoclube tinha agora a sua forma mais imediata de tentar salvar o planeta. Passei anos sem comer carne e peixe. Fazia excepções de longe a longe para comer patê de atum - eu sei, sou uma pessoa simples, desculpem se vos desiludo com a minha falta de gourmandice.
Em Março de 2018, perante um leitão que havia sido sacrificado a propósito do aniversário da minha avó Rosa e deixando-me seduzir pela ideia de ser só daquela vez, comi. Sabem aquela sensação de nojo depois de anos sem comer carne? Aquele desprezo pelo cheiro, pela textura, pelo paladar? Não tive. Nem isso, nem remorsos. Foi prazer. Do início ao fim, foi tudo prazer. A minha renúncia à carne e ao peixe era puramente ideológica e eu continuava a salivar tanto por um suculento naco de bife de vaca, como por uma suave posta de bacalhau.
Pois é, sou uma panela cheia de incongruências, daquelas a borbulhar que até salpicam para fora. Durante muito tempo, depois desse episódio, continuei sem comer carne nem peixe. Voltei a pesquisar e a ler intensivamente sobre o tema. Questionava as minhas ideias, as minhas convicções e as minhas vontades. Será que acreditava num mundo em que não comêssemos carne e peixe? Não. Acreditava num mundo em que procurássemos equilíbrio e balanço, isso sim.
A forma como via o vegetarianismo foi mudando. Fui fazendo o caminho inverso e introduzindo de forma consciente e esporádica a carne e o peixe na minha alimentação. Agora, a carne e o peixe que escolhia comer eram forçosamente mais caros. Como comia muito menos podia pagar mais e escolher melhor. Desde 2020 que defini como intenção fazer uma alimentação consciente e intuitiva. Numa tentativa de equilibrar a balança, não tenho por hábito cozinhar carne ou peixe em casa. Não me restrinjo a comê-los fora.
Não tenho grandes pretensões em ser refém da coerência. Fosse essa a minha luta e jamais poderia ir jantar fora. O universo da gastronomia põe-me muitas vezes em conflito. Sei que me sinto melhor quando sou congruente mas o caminho da consciência tem dias um bocado chatos. Como quando o prato vem para a mesa e, por força da estação, sabemos que é impossível que aquele produto tenha sido colhido em solo nacional. Como quando entro num restaurante e não há uma única mulher na brigada de cozinha - não é falta de jeito, nem de talento, nem de força, nem de capacidade de trabalho; é um mundo ainda cheio de sexismo, de machismo, altamente hostil, que oprime e afasta as mulheres. Como quando sei que a pessoa que me serve recebe um salário muito inferior ao que seria justo pelas suas horas de trabalho, pela dureza da sua função, pelo horário repartido - sabemos que não falta quem queira trabalhar e que as pessoas mais vulneráveis vão sempre aceitar condições medíocres porque necessitam, a questão é o que fazer para impedir que isso se perpetue. Como quando vemos que os patrões enriquecem às custa dos trabalhadores, dos fornecedores, dos entregadores - o capitalismo é a maior luta de todas e acabamos por nos deixar vencer pela sensação de impotência perante o poder do dinheiro.
A luta faz-se nas ruas, nas praças, nas casas e em todo o lado. Faz-se à mesa e faz-se a comer. Pelas escolhas que fazemos sobre o que compramos, como compramos, onde compramos e também sobre o que comemos, como comemos e onde comemos. A minha luta procuro fazê-la também através da comida. Muitas vezes a errar, tantas vezes a aprender e sempre a questionar.
Anita