Ainda se pode falar sobre pão?

16 de Janeiro, 2022

Ainda se pode falar sobre pão?

Passaram quase dois anos e, embora raras vezes me atrase, sinto sempre que chego às coisas fora do tempo. Agora que já ninguém bates palmas à janela é que decido aprender a fazer pão.

Depois dos livros foi a comida a revolucionar a minha vida. E desconfio que por ter um ofício tão abstrato e efémero, olho com curiosidade e admiração as pessoas que constroem coisas com as suas mãos, coisas palpáveis que lhes permitam dizer “eu fiz isto”.

Em 2014 decidi que queria cozinhar a sério. Comecei a tomar conta da cozinha da minha avó e a imaginar vender comida para fora. Escrevi um programa de culinária onde juntava todas as minhas paixões do momento, peguei no dinheiro que tinha de lado e gravei um episódio piloto. Comprei livros de receitas, comecei a estudar e a cozinhar muito e, quando fui viver sozinha, senti que a maior independência que podia ter era a de me conseguir alimentar, mesmo com poucos recursos ou com pouco dinheiro.

O que tinha aprendido dava as mãos à minha criatividade e a cozinha virou o meu parque de diversões.

Corta para 2020 em que tanta gente se refugiou na cozinha e se dedicou ao pão. Passei quase incólume por esse movimento admirando com entusiasmo quem descobria o poder das coisas feitas por nós. Quanto mais fazemos menos desperdiçamos e compramos, mais partilhamos e nos libertamos.

Ontem, horas antes de começar a aprender a fazer massa mãe com o Daniel Brandão, fui visitar a Azeda em São João da Madeira. É uma padaria artesanal que se dedica à confeção de pão de fermentação natural (a partir de massa mãe - uma cultura de bactérias à base de água e farinha). Ver o pão artesanal espalhar-se pelo país alegra-me tanto como testemunhar o trabalho agrícola, artesanal e criativo que a Quinta da Arminho faz com a agricultura regenerativa em Mangualde.

Há quem lhe chame “regresso ao passado” ou “como antigamente”, prefiro pensar que aprendemos, evoluímos e queremos continuar a subsistir. Fazendo pão, cultivando a terra e criando animais. Mas o tempo foi pouco nosso amigo, apressou-se e nós com ele. Deixámos de olhar para o mundo como um todo, de ter tempo para as suas infinitas possibilidades e necessidades e começámos a ir todas as semanas ao supermercado suprir as urgências da semana. Só que tudo parte de algures e segue para um outro lugar gerando uma outra coisa. Há quem veja lixo, há quem veja desperdício e há quem veja o irrevogável ciclo presente em tudo.

Na Azeda fazem-se bolachas crocantes de alecrim a partir do descarte da massa mãe, na Arminho prova-se como o conceito de desperdício é “quase artificial” quando a natureza se alimenta cíclica e mutuamente. Alimentamos a terra, que alimenta os animais, que nos alimentam a nós, que alimentamos os animais, que alimentam a terra que nos dá alimento e… nunca mais acaba.

Decidir aprender a fazer pão de fermentação natural diz pouco sobre a quantidade de pão que vou fazer em casa. Ouvir o Daniel Brandão falar da sua experiência na indústria e de como a podemos transformar, foi como manteiga no pão acabado de cozer.

Demonizamos a comida de verdade para acabarmos no hipermercado a comprar muffins de chocolate, sem glúten e sem açúcar, por €0,40 a unidade.

A modernidade é resgatar coisas de um passado esquecido e domado pelo capital. Redescobrir o que é bom, o que é saudável e sustentável está longe dos laboratórios do futuro. Quantos anos foram precisos para a margarina arruinar com a banha de porco e para a fermentação industrial nos retirar da história o pão feito com tempo e com saber?

Claro que a minha avó só conseguiu ir trabalhar porque a industrialização lhe permitiu afastar-se da cozinha e criar refeições em muito menos tempo. Mas talvez isto seja menos sobre o pão e mais sobre a urgência de voltarmos a produzir de forma desacelerada o que comemos. Quantas vezes dou por mim a pôr no carrinho mais uma tortilha pronta a comer para salvar aquele dia mais corrido?

Tenho dúvidas de que fazer pão seja terapêutico ou nenhum problema de saúde mental teria deixado rasto depois desta pandemia. O pão é uma metáfora. É o ponto de partida para falarmos da industrialização da comida, da valorização do produto, do processo e do resultado. Se a nossa luta fosse menos contra o sal, contra o açúcar e contra o glúten e mais contra a velocidade a que queremos as coisas, contra os nossos desejos e caprichos imediatos e contra a “comida porcaria”, acharíamos mais caro comprar dez pães industriais por um euro do que um pão artesanal por quatro.

Em poucos dias estaremos de caneta em punho a decidir o futuro. Assistimos a discursos que arrasam o pensamento cultural, os direitos humanos e a democracia. Há uma vertigem e uma urgência de nos salvarmos desta ameaça que põe em risco o planeta, os animais e as pessoas.

Aprender a fazer pão está para a sobrevivência à pandemia como o debate de ideias democráticas e plurais, a escuta do pensamento intelectual, o direito à arte e à cultura e a reivindicação por uma educação gastronómica que nos ensine o caminho da liberdade e da sustentabilidade está para a luta contra a extrema direita.

Agarrar-me aos livros, ao teatro ou a fazer iogurtes é apenas a minha forma de enganar o medo e alimentar a crença de que sobreviveremos. De que os cabeças de laranja, de geleia e outros ingredientes, sejam digeridos pela democracia com a mesma facilidade com que digerimos pão de fermentação natural.

Não somos um sem o outro - citando a Ana Luísa Amaral - e não há pão que não seja sobre política, nem política que não seja sobre cultura nem cultura que não seja sobre liberdade.

Anita