Passaram quase dois anos e, embora raras vezes me atrase, sinto sempre que chego às coisas fora do tempo. Agora que já ninguém bates palmas à janela é que decido aprender a fazer pão.
Depois dos livros foi a comida a revolucionar a minha vida. E desconfio que por ter um ofício tão abstrato e efémero, olho com curiosidade e admiração as pessoas que constroem coisas com as suas mãos, coisas palpáveis que lhes permitam dizer “eu fiz isto”.
Em 2014 decidi que queria cozinhar a sério. Comecei a tomar conta da cozinha da minha avó e a imaginar vender comida para fora. Escrevi um programa de culinária onde juntava todas as minhas paixões do momento, peguei no dinheiro que tinha de lado e gravei um episódio piloto. Comprei livros de receitas, comecei a estudar e a cozinhar muito e, quando fui viver sozinha, senti que a maior independência que podia ter era a de me conseguir alimentar, mesmo com poucos recursos ou com pouco dinheiro.
O que tinha aprendido dava as mãos à minha criatividade e a cozinha virou o meu parque de diversões.
Corta para 2020 em que tanta gente se refugiou na cozinha e se dedicou ao pão. Passei quase incólume por esse movimento admirando com entusiasmo quem descobria o poder das coisas feitas por nós. Quanto mais fazemos menos desperdiçamos e compramos, mais partilhamos e nos libertamos.
Ontem, horas antes de começar a aprender a fazer massa mãe com o Daniel Brandão, fui visitar a Azeda em São João da Madeira. É uma padaria artesanal que se dedica à confeção de pão de fermentação natural (a partir de massa mãe - uma cultura de bactérias à base de água e farinha). Ver o pão artesanal espalhar-se pelo país alegra-me tanto como testemunhar o trabalho agrícola, artesanal e criativo que a Quinta da Arminho faz com a agricultura regenerativa em Mangualde.
Há quem lhe chame “regresso ao passado” ou “como antigamente”, prefiro pensar que aprendemos, evoluímos e queremos continuar a subsistir. Fazendo pão, cultivando a terra e criando animais. Mas o tempo foi pouco nosso amigo, apressou-se e nós com ele. Deixámos de olhar para o mundo como um todo, de ter tempo para as suas infinitas possibilidades e necessidades e começámos a ir todas as semanas ao supermercado suprir as urgências da semana. Só que tudo parte de algures e segue para um outro lugar gerando uma outra coisa. Há quem veja lixo, há quem veja desperdício e há quem veja o irrevogável ciclo presente em tudo.
Na Azeda fazem-se bolachas crocantes de alecrim a partir do descarte da massa mãe, na Arminho prova-se como o conceito de desperdício é “quase artificial” quando a natureza se alimenta cíclica e mutuamente. Alimentamos a terra, que alimenta os animais, que nos alimentam a nós, que alimentamos os animais, que alimentam a terra que nos dá alimento e… nunca mais acaba.
Decidir aprender a fazer pão de fermentação natural diz pouco sobre a quantidade de pão que vou fazer em casa. Ouvir o Daniel Brandão falar da sua experiência na indústria e de como a podemos transformar, foi como manteiga no pão acabado de cozer.
Demonizamos a comida de verdade para acabarmos no hipermercado a comprar muffins de chocolate, sem glúten e sem açúcar, por €0,40 a unidade.
A modernidade é resgatar coisas de um passado esquecido e domado pelo capital. Redescobrir o que é bom, o que é saudável e sustentável está longe dos laboratórios do futuro. Quantos anos foram precisos para a margarina arruinar com a banha de porco e para a fermentação industrial nos retirar da história o pão feito com tempo e com saber?
Claro que a minha avó só conseguiu ir trabalhar porque a industrialização lhe permitiu afastar-se da cozinha e criar refeições em muito menos tempo. Mas talvez isto seja menos sobre o pão e mais sobre a urgência de voltarmos a produzir de forma desacelerada o que comemos. Quantas vezes dou por mim a pôr no carrinho mais uma tortilha pronta a comer para salvar aquele dia mais corrido?
Tenho dúvidas de que fazer pão seja terapêutico ou nenhum problema de saúde mental teria deixado rasto depois desta pandemia. O pão é uma metáfora. É o ponto de partida para falarmos da industrialização da comida, da valorização do produto, do processo e do resultado. Se a nossa luta fosse menos contra o sal, contra o açúcar e contra o glúten e mais contra a velocidade a que queremos as coisas, contra os nossos desejos e caprichos imediatos e contra a “comida porcaria”, acharíamos mais caro comprar dez pães industriais por um euro do que um pão artesanal por quatro.
Em poucos dias estaremos de caneta em punho a decidir o futuro. Assistimos a discursos que arrasam o pensamento cultural, os direitos humanos e a democracia. Há uma vertigem e uma urgência de nos salvarmos desta ameaça que põe em risco o planeta, os animais e as pessoas.
Aprender a fazer pão está para a sobrevivência à pandemia como o debate de ideias democráticas e plurais, a escuta do pensamento intelectual, o direito à arte e à cultura e a reivindicação por uma educação gastronómica que nos ensine o caminho da liberdade e da sustentabilidade está para a luta contra a extrema direita.
Agarrar-me aos livros, ao teatro ou a fazer iogurtes é apenas a minha forma de enganar o medo e alimentar a crença de que sobreviveremos. De que os cabeças de laranja, de geleia e outros ingredientes, sejam digeridos pela democracia com a mesma facilidade com que digerimos pão de fermentação natural.
Não somos um sem o outro - citando a Ana Luísa Amaral - e não há pão que não seja sobre política, nem política que não seja sobre cultura nem cultura que não seja sobre liberdade.
Anita