Estamos num restaurante. O casal heterossexual que se sentou antes de nós está numa mesa atrás de Garibaldi (dentro do meu campo de visão, portanto). Não ouço na perfeição tudo o que dizem mas o rapaz está de frente para mim e consigo ler-lhe os lábios - aqui vou chamar-lhe Joel. Estamos no Minho, há carnes boas e suculentas e o Joel - 30 anos, cabelo farfalhudo - pede posta da casa.
Como prefere o ponto da carne? - pergunta a chefe de sala. Médio-bem, por favor. E sem sangue, está bem? - devolve o Joel.
Os meus olhos arregalados convidam Garibaldi a tentar ouvir. Ponho a mão à frente da boca e digo: - sem sangue, diz ele. A chefe de sala engole em seco, recebe o resto do pedido e segue até à cozinha.
Eu converso com Garibaldi e simultaneamente observo e ouço o que se vai passando em redor. Há um grupo de quatro pessoas sentado ao fundo da sala que saem para fumar entre as entradas e o prato principal. Há um rapaz e uma rapariga que parecem estar num date. Corpos rígidos, sorrisos tímidos, piadas a medo. Há um outro casal do meu lado esquerdo que não fala, ela de olhos postos no telefone, ele de olhos voltados para a janela. Entre mim e Garibaldi, o forrobodó de sempre. Rir mais alto do que é suposto, devorar as azeitonas antes das bebidas chegarem à mesa, apontar ideias estapafúrdias que surgem de forma aleatória, revirar os olhos porque um de nós se esqueceu de fechar as persianas ou de regar as plantas.
O pedido de Joel chega à mesa. Eu congelo ansiosamente para saber se a posta está no ponto desejado. Não está. Vou relatando tudo a Garibaldi, sempre com a mão a esconder a boca, caso alguém nestes cerca de 100 metros quadrados domine tão bem a leitura dos lábios como eu.
Joel faz sinal à chefe de sala: - Eu peço desculpa, mas a batatas estão cruas e a carne está cheia de sangue. Joel não gosta de comer carne em condições mas é super simpático e educado. Consigo simpatizar com ele embora esteja mais solidária com a carne. Os meus olhos seguem o prato a viajar pela sala de volta à cozinha. Adeus carne boa e suculenta, perdoa o Joel que ele não sabe o que faz. Entretanto eu e Garibaldi já trocámos pratos, já comemos do garfo do outro, já roubámos aquele pedaço perfeito e estamos encantados com a vista sobre as montanhas. A namorada de Joel já vai a meio do seu prato de bacalhau. A chefe de sala traz de novo o prato de Joel. Aguarda junto à mesa. Ele prova uma batata e assente confirmando que está bem confeccionada. Parte um pedaço da carne, observa o seu interior, torce o nariz e pede delicadamente para que levem o prato para trás. Queria mesmo sem sangue nenhum, pode ser? - pergunta o Joel. A chefe de sala nem respira, sorri e diz: - claro que sim, volto já. Reporto tudo a Garibaldi e iniciamos uma conversa sobre os mitos da carne, sobre o “sangue que não é sangue”, esses sucos também conhecidos como hemoglobina e que tanta vezes nos fazem assassinar ainda mais o animal já morto, sobre o Mauro Soares e o Ponto Certo da Carne. Joel vê o seu prato a sair da cozinha e sussurra à namorada: - Vamos ver se é desta. O prato chega à mesa e a chefe de sala segue o seu caminho sabendo que desta vez não haverá retorno. E eu penso como aquele bife, agora cinzento, borrachento e empedernido, foi outrora uma promissora posta da casa. A equipa daquela cozinha talvez sonhe com uma clientela mais educada e informada. Mas como o cliente tem sempre razão, o que importa é que Joel está feliz. Corta um pedaço de carne, aprecia o seu interior extenuadamente bem passado, mostra-o orgulhosamente à namorada e remata: - Vês? Assim sim.
Anita