Não sei onde quero chegar com isto. Talvez queira apenas não me sentir só, sem eco e sem retorno, sem aceno ou contraditório, quando penso na quantidade de coisas que escolhemos não fazer e em como isso vai moldando o ambiente à nossa volta.
-A professora dá as aulas de uma forma muito política. - dizia-me um aluno estudante de cozinha a propósito da sua avaliação ao meu módulo de Desenvolvimento Pessoal e Criativo. No seu entender, poderia não ter trazido temas como construções de género, capitalismo, preconceito, privilégio de classe, direitos humanos e por aí fora. - Talvez ele não se referisse tanto ao conteúdo mas sim à forma. - comentava eu com Garibaldi enquanto me punha em causa.
Inquieta-me não só não ter conseguido fazer melhor, como também ter falhado nessa aproximação que gostaria de ter gerado entre os meus alunos e alunas e a noção de que tudo o que fazemos é político. Mesmo quando nos afastamos da palavra, mesmo quando escolhemos não votar, não ler, não saber. Todas estas decisões são altamente políticas.
Há um ano atrás, falava com uma amiga sobre a inevitabilidade de todo o teatro que fazemos ser político, como também daquilo que escolhemos não levar para cena. Ontem, lia as palavras dessa amiga que tanto admiro, Sara Barros Leitão, a propósito da sua entrevista à revista Prima, em que dizia que muitas vezes, não aceitar um convite é mais importante do que aceitar. No nº 16 da revista Cherry Bombe, dedicado especialmente a Julia Child, Alana Al-Hatlani escreve sobre como Julia se debateu pela autodeterminação das mulheres (em relação ao seu corpo e pela liberdade de escolha no que diz respeito ao aborto) e em como os media têm escolhido deixar de fora da narrativa que veiculam, sobre esta mulher-ícone da gastronomia, essa parte da sua história.
Eu não sei o que pensava exactamente o meu aluno ao dizer-me aquilo. Sei apenas o que senti e o que pensei. Senti que ele gostava que eu tivesse sido mais neutra, que não me tivesse pronunciado, que não tivesse agitado as águas. Como senti desde pequena de cada vez que “levantava cabelo”. Quando começo a duvidar de mim salvam-me sempre os livros (muitas vezes para dizerem que estou errada, mas não desta vez). Desta vez, salvou-me o livro de bell hooks (pseudónimo de Gloria Jean Watkins) que estou a ler - Teoria Feminista - em que a autora recorda um cartaz de uma manifestação em que se lê, o pessoal é político.
Como posso eu ser neutra só para não ser incómoda à apatia que se instala? Lembro-me de ser adolescente e de descobrir a simbologia do sapo que travava a porta de uma padaria onde costumava ir. Escolher não entrar quando um desses sapos se apresenta pode não gerar qualquer impacto político aparente mas acredito que os protestos podem acontecer dentro de nós todos os dias, em cada escolha que fazemos, em cada decisão consciente que conseguimos e podemos tomar. E isso não é nada parecido com a ideia de temos de neutralidade. Como escolher não comer carne nem peixe na maioria das refeições que faço. Como não permitir que façam comentários sobre o meu corpo, se está mais gordo, se está mais magro, se já pesei mais ou se já fui mais leve. Como não dizer o primeiro nome que me vem à cabeça quando me pedem referências - porque o primeiro nem sempre é quem mais precisa ser ouvido/a, notado/a ou reconhecido/a. Como não ir ao supermercado para não contribuir para a cultura de massas - ninguém precisa daquele corredor inteiro do Continente com dezenas de marcas e tipos de polpa de tomate, tomate em pedaços, tomate em cubos, tomate pelado e sei lá mais o quê (comprem os tomates na época, congelem-nos, passem-nos por água a escaldar, tirem-lhes a pele e triturem-nos: eis a melhor polpa que tereis todo o ano).
Não há neutralidade nenhuma nas coisas que escolhemos não comprar, nos jornais que escolhemos não ler, nos restaurantes a que optamos por não ir, nos supermercados que decidimos evitar, nos territórios que escolhemos não cultivar, nas pessoas com quem não aceitamos trabalhar.
Mas nem todas as não-decisões que tomamos são puras e livres escolhas, muitas vezes, para muitas de nós, são a única escolha possível. E isso também é política, ora causa ora consequência. Como não há neutralidade nenhuma nos silêncios das lutas que não conseguimos travar.
Eu tenho o privilégio de poder escolher alguns “sins” e “nãos” e por isso este ano escolhi parar uns dias em Agosto (mais dias do que em algumas férias que tive desde que terminei o 12º ano). Desde os 18 anos votei em todas as eleições da forma mais informada que pude e sinto que esta é das decisões mais políticas que já tomei na vida. A decisão de parar, de descansar, de desfrutar, de não sentir culpa ou medo por não estar a trabalhar, a criar, a produzir.
Comer é um privilégio. Escolher onde se come é um privilégio de classe. Escolher onde não se come é uma decisão política. Em Agosto, vou banhar-me de Sol, de Mar e de livros. Vou comer e tentar decidir os melhores “sins” e “nãos” que sei.
Anita