Comidas salva-vidas.

13 de Março, 2021

Comidas salva-vidas.

O melhor prego da minha vida comi-o no dia 21 de Dezembro de 2020, no Café Eléctrico, ao lado do Mercado de Matosinhos. Agora o resto leia quem quiser, o que importa já está dito.

Imaginem que estão a mudar de casa. Exactamente, é mesmo essa a imagem. Só que agora em pleno Agosto. Isso mesmo. Suor em todas as partes inóspitas do corpo. Caixas abertas e empilhadas por todo o lado. Dentes afiados prontos a cortar mais um metro de fita cola. Horas a carregar pesos como uma mula de alta competição, qual treino de crossfit. Sobe escada, desce escada e não pára um segundo porque depois é pior.

A primeira noite numa “casa nova” tem todas as promessas de evento especial, uma espécie de noite de núpcias das mudanças de casa. O que ninguém nos diz é que vamos acordar com dores inenarráveis da nuca até à lombar, sem conseguirmos rodar os braços de tão doridos que temos os ombros e com os gémeos a arder de cada vez que damos um passo. Imaginamos um cenário paradisíaco, como as paisagens da Serra do Montemuro, só que acordamos sem saber onde estamos, a tropeçar nas pilhas de caixas que temos no corredor e quase a fazer xixi nas pernas porque ainda não sabemos de cor o caminho para a casa de banho. Assim que o cérebro acorda o suficiente para estar consciente, o primeiro pensamento é preciso de comer, o segundo é que não temos nada em casa. Estava eu na casa de banho à procura do papel higiénico, naquela posição de agachamento, com os calções de pijama nos joelhos, e Garibaldi aparece e diz - Eu vi uma caixa que dizia "goodies cozinha”. Os meus olhos arregalaram-se, aquela caixa tinha vindo comigo e eu sabia exactamente o que estava prestes a salvar-nos. Sem sucesso na demanda do papel higiénico, inaugurei o bidé e em 5 minutos tínhamos o pequeno almoço na mesa - Marmelada e Biscoitos Paupério harmonizado com duas canecas de Água da Torneira. Tudo o que precisávamos para começarmos a fazer de um lugar desconhecido o sítio onde viríamos a passar o nosso segundo confinamento juntos.

Ainda não tínhamos recuperado o fôlego das mudanças de Agosto já Dezembro nos inspirava a mudar de novo: trazer o Estúdio Cozinha para dentro da nossa cozinha. Canja! - pensei eu ainda sem saber o que me esperava naqueles sete lances de escadas que levavam até ao estúdio que Garibaldi se preparava para deixar. No desespero de não haver espaço para tudo, decidimos organizar uma venda em segunda mão. Claro! Tudo o que precisávamos no meio daquele caos era de acrescentar à lista infindável de tarefas a montagem de uma feira de pechinchas, organizada por secções e etiquetada como deve ser. Garibaldi diz que eu levo a coisas a sério e é verdade. É como comer. Se for para mandar vir take away de um restaurante supimpa para chegar tudo mais ou menos, prefiro não arriscar. Ou é ou não é.

De repente, tínhamos uma mudança pronta para desembarcar na nossa cozinha e 100 metros quadrados de Feira de Natal onde socializaríamos mais do que em todo o ano de 2020. Foi como mudar de casa três vezes em três dias seguidos. Entre cada etapa a acartar coisas à chuva, dávamos “mais cinco” assinalando que faltava um pouco menos. No último dia, já nenhum de nós conseguia articular uma frase coerente. Eu balbuciava palavrões a cada expiração, Garibaldi grunhia “ais" de queixume e uma discussão despontava a cada coisa que um de nós tentava sugerir.

21 de dezembro, 40 minutos para a abertura da feira e tudo pronto. O mesmo pensamento: preciso de comer. Qualquer coisa que me salve e me renove as forças numa só dentada. Garibaldi, já com o casaco na mão, exímio a desvendar os meus pensamentos, fez-nos descer a rua junto ao Mercado de Matosinhos e ali estava ele. O meu novo templo. Aquele cheiro a fritos característico do snack bar português e aquele que haveria de se tornar no melhor prego da minha vida. Enquanto Garibaldi se entusiasmava a falar das bifanas do Café Eléctrico (segundo a lenda, fruto de uma receita roubada à Conga), eu perdia-me na suavidade daquele bife, na simplicidade daquele pão, e pedia só mais um (duas vezes). Fico sempre impressionada com a capacidade que temos de transformar coisas médias em coisas memoráveis: bife, pão, alho esmagado, tempo, técnica e dedicação.

Na escala de zero a perfeição, este prego do Eléctrico figura agora, ao lado dos Biscoitos Paupério, na minha lista de comidas salva-vidas.  Comidas que me resgatam do cansaço e me fazem sentir capaz de começar tudo outra vez. Só não digam isto ao Garibaldi, pelo menos nos próximos seis meses.

Anita