Desde há muito tempo que se tem desenvolvido em mim o sentimento de que a gastronomia é uma celebração. Não o ato de comer em si, mas o que se come e com quem se come.
Depois de tanto tempo de confinamento e distanciamento, em que as efemérides festivas foram bastante reduzidas, sinto que aqui em casa ganhou espaço uma alimentação mais funcional no dia a dia e menos elaborada. Não aquela alimentação funcional de substitutos disto e daquilo com macro nutrientes pesados à miligrama, mas sim uma cozinha funcional, no sentido de quem adora comer mas também não pode perder muito tempo a cozinhar. A solução é simples: bons produtos. Uns pózinhos de perlimpimpim também ajudam, isto é, um bom leque de especiarias e condimentos. Almoços e jantares rápidos resolvem-se facilmente com dois ou três vegetais, juntos ou em separado, cada um com seu pairing de condimento ou todos com o mesmo. Ovos são indispensáveis e ficam bem com tudo - na francesinha eu dispenso mas essa polémica fica para outra altura. E pão, claro, simultaneamente a cama e a vassoura perfeitas, segura o conduto e limpa o prato a seguir.
Mas claro que nem tudo é simples e fácil, há sempre uma variável de desafio. Aqui em casa a dificuldade é decidir quem vamos agradar a cada refeição. Eu adoro alface, vegetal que a aborrece. Anita dispensa fruta fresca e frutos secos antes da sobremesa, eu não dispenso uma boa oportunidade de misturar doce e salgado. Quando se cozinha ovos, eu prefiro-os mexidos e cremosos, a minha parceira prefere-os mais cozinhados, em omeletes. Felizmente conseguimos enterrar o machado de guerra num terreno comum: os ovos estrelados.
A mulher com quem partilho a vida tem outra paixão quase tão grande como a que tem por mim: cebola crua. Para ela, não há nada que não case com cebola. Relações duradouras, one night stands, tudo faz match. Já o meu prato é poliamoroso. No dia a dia, partilha a mesa com o saleiro e o pimenteiro. Numa ocasião mais festiva, abre as hostes do bacanal e traz os fermentados para apimentar o ambiente. Eu sou de sabores fortes e intensos, Anita prefere carícias mais delicadas no palato.
Com tantas variáveis, acabamos por criar refeições modulares com alguns elementos frescos, outros cozinhados, uns mais bombásticos e outros mais refrescantes. É semelhante à prática das caixas bento, mas numa versão mediterrânica e menos organizada. As excepções que confirmam a regra são as refeições SOS conforto quando nos sentimos mais abalados. Geralmente são arrozes caldosos com verdes e volta e meia algum enchido, e massas, seja esparguete a la carbonara ou uma qualquer forma de pasta com um molho de natas e queijo - são duas coisas diferentes, ok?
Deixemos os pratos elaborados e laboriosos para os dias de celebração e de convívio. E a proteína animal também, já agora. A verdade é que ninguém precisa de feijoada e cozido a todas as refeições. A sério, vão sentir-se mais leves. E não é leves no sentido da balança, que quem escreve isto está bem acima dos três dígitos de peso.
Maria de Lourdes Modesto compilou a Cozinha Tradicional Portuguesa e é a bíblia dos pratos que tanto nos dizem e definem a nossa identidade. Mas essa não é uma cozinha de dia a dia. Quiçá, daqui a uns anos, alguém nos traga uma Cozinha Diária Portuguesa.
Garibaldi