Cozinhar a dois é uma dança.

21 de Março, 2021

Cozinhar a dois é uma dança.

Anita e eu temos estilos bastante diferentes a cozinhar. Não sei se, com a minha falta de experiência, dizer que tenho um estilo é esticar a corda, mas vamos prosseguir. O processo de aprendizagem com a prática também ajuda a encontrar e definir esse estilo, que até há pouco tempo não passava de uma definição de interesses, uma carta de intenções. Cozinhar diariamente, sozinho ou com Anita, permite-me negociar entre o rigor das regras e o prazer de se comer algo feito com as nossas próprias mãos, mesmo não seguindo essas regras. É como se estivesse a ter uma conversa entre o meu eu físico e uma projeção de mim fora do meu corpo. Este arroz está ligeiramente empapado e mal cozido ao mesmo tempo - diz o meu eu fora do corpo. Eu sei, mas não está extremamente saboroso e bem temperado? - responde o meu eu físico.

Quando cozinho com Anita alterno também entre estas duas personagens, apesar de ser ela a atriz do casal. Quando nos conhecemos, Anita cozinhava com alma mas sem regras nenhumas. Hoje em dia também já tem o seu eu coach de técnica e cultura gastronómica. Cozinharmos juntos é uma dança a quatro pés mas também quatro vozes: os nossos quatro pés, ligeiramente de chumbo, as nossas vozes e as vozes dos nossos eus exteriores, coaches e críticos gastronómicos. Quando Anita toma o comando, sente-se observada e julgada por mim e pelo Zé - o meu eu gastronómico - sempre pronto a dar sugestões ou, quando não as dá a tempo, a dizer que afinal Anita devia ter feito de outra forma. Já na inversão dos papéis, Anita fica nervosa na mesma mas, desta feita, com a minha falta de competência. Ou melhor, pela minha falha em não fazer as coisas à sua maneira e no seu ritmo alucinante de tem-que-ficar-já-pronto. O meu eu gastronómico, o Zé, é também ele neto do meu avô Zé Rocha, que cortava batata palha à mão para fazer bacalhau à Brás e fazia cintos de fio de pesca. Zé, é um ser dotado de bastante paciência e que tira prazer disso, de fazer tudo nas calmas. E, admitamos, há sempre um ligeiro bloqueio de quem não está cem por cento seguro do que está a fazer, aprendendo algo mais a cada gesto. Quando Anita está no leme da cozinha, a voz que me sai é a de quem há anos devora livros, revistas e vídeos sobre inúmeras técnicas gastronómicas, mas quando estou eu no ativo, perde-se a ligação entre todo esse conhecimento adquirido e o corpo de quem o precisa de pôr em prática. É um mistério. Ou talvez se deva a algo chamado “falta de prática".

Cozinhar a dois é uma dança a quatro passos que vamos ensaiando aos poucos. Quatro passos, quatro tipos de conhecimento. Um, dois, conhecimento empírico, três, quatro, conhecimento científico, cinco, seis, conhecimento filosófico, sete, oito, conhecimento teológico e volta. A coordenação entre estes quadrantes faz-nos executar qualquer tarefa ao mais alto nível. Um, dois, ela tem muito mais experiência que eu. Três, quatro, eu tenho muito mais conhecimento da teoria técnica que ela. Ainda vamos a meio e já nos estamos a desequilibrar. Cinco, seis, e se fizéssemos isto de outra forma? Sete, oito, no fundo sonhamos com o mesmo resultado final e acreditamos ser capazes de lá chegar. Vá lá, apesar de nos dois primeiros passos termos tendência a pisar-nos porque eu vou mais para um lado e ela para o lado contrário, com o devido treino e uma dose extra de amor havemos de acertar no compasso completo.

Lembro-me de, no início do nosso namoro, falarmos sobre a hipótese de um dia aprendermos danças de salão. Acho que enquanto as pistas de dança (e as raves) não abrirem, vamos ter de continuar com estes bailinhos caseiros. A salsa já dominamos, o merengue havemos de treinar em breve porque ambos temos saudades de um bom Eton Mess.

Garibaldi