Tinha oito anos quando percebi que a segurança e a coragem do género feminino podiam ser bastante incómodas para a maior parte das pessoas. E olhem que eu nunca fui muito segura nem corajosa. Já no início da minha adolescência, quando se queriam referir à minha postura independente, destemida e sempre com a resposta na ponta da língua, diziam que eu era dona do meu nariz. Quem me visse hoje a cirandar nesta cozinha diria que eu sou dona do meu fogão. E da minha espátula. E do meu avental. E do meu pano imundo de limpar as mãos depois de pelar tomates. Dona de tudo o que me rodeia neste território que hoje tomo como meu.
Depois de anos e anos a renegar à cozinha, com um medo absurdo de me tornar na feminista-doméstica, acabei por me afastar deste lugar que é hoje um dos meus passatempos favoritos. Sinto que estou numa fase de pleno egoísmo culinário. Mas não foi sempre assim. Aliás, nunca poderia aspirar a cozinhar profissionalmente porque a minha relação com os tachos, está mais que visto, é tão de luas como o meu humor três dias antes de menstruar. Passei anos da minha vida sem a confiança necessária para me entregar às receitas, a fazer só pasta de atum e a comer sandes de queijo. Sem tempo, sem paciência, sem o mínimo apelo por uma humilde batedeira de varas.
Já fui a figura encarquilhada e cabisbaixa a pedir permissão para tirar uma sertã do armário. Já hesitei milhares de vezes antes de virar uma panqueca no ar (que, sabemos bem, é a forma mais rápida de estatelar com ela na placa de vitrocerâmica). Já andei às voltas com o carrinho no meio do supermercado enquanto ligava à Maria Rosa Avó e logo de seguida à Maria Rosa Sogra, a quem passo a vida a perguntar como faço isto e aquilo, tal era o receio de uma incursão culinária a sério.
É que na cozinha onde cresci também havia uma dona do seu fogão. E isso, para quem precisa de uma boa dose de auto-estima, não dá grande espaço para o erro nem para a experimentação. - Posso fazer alguma coisa? - perguntava eu. Não, não preciso que faças nada. - respondia a Maria Rosa Avó. E eu lá dava meia volta enquanto esperava o momento da prova.
O que eu não imaginava, é que entre saber comer e saber cozinhar era mesmo preciso construir uma auto estima saudável.
Agora? É ver-me entrar numa loja de loiças e apetrechos culinários, arregalar os olhos a Garibaldi e dizer: - Hoje estou compradora! Ou ver-me escolher legumes e frutas no Mercado de Matosinhos como se estivesse no lançamento da última coleção do atelier The M Pire.
Não sei até quando durará esta sobranceria culinarista, mas vou aproveitar este momento de obstinação para ser dona da minha cozinha e do meu fogão, para me barricar do lado de cá desta ilha e dar o chega para lá em Garibaldi quando este vier meter o bedelho. Uma espécie de independência armada ao pingarelho ou de emancipação dentro da cozinha.
Anita