Fui a Coimbra.

5 de Outubro, 2021

Fui a Coimbra.

Anita expressava há meses a sua vontade de ver Catarina e a beleza de matar fascistas. Um espetáculo muito bem recebido pelo público que, em conjunto com as limitações de lotação impostas pela pandemia, fez dos seus bilhetes um tesouro digno de plantão em frente ao site da BOL. Depois de várias tentativas em vão eis um episódio de filme. À hora exata anunciada em que uns adicionais 176 bilhetes iriam ser postos à venda para o espetáculo em Ílhavo, abri o site e vi-os desaparecer à frente dos meus olhos sem os conseguir comprar - qual vírus informático a apagar os nossos documentos mais importantes. Finalmente, conseguimos dois bilhetes para o Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra. Descobri ainda que no mesmo dia aconteceria o festival Jazz Não Jazz. Um dia para viver as paixões de Anita e de Garibaldi.

Durante a viagem trocámos ideias acerca de onde jantaríamos. Temos Coimbra como um ponto no mapa da nossa história pessoal. Anita pelos fins de semana com amigos do MOCAMFE e, no meu caso, por ter feito rádio na RUC.

Tendo pouco tempo entre o festival e o espetáculo, precisávamos de algo grab and go. Vamos à Vénus buscar uns salgados - sugeri.

Já em Coimbra, percebi que os 25% de chance de chuva tinham passado para uma certeza de 100% de que já tinha chovido e que voltaria a chover. Este volteface metereológico obrigou ao adiamento do Jazz Não Jazz. Pela primeira vez, tínhamos em mãos merchandise de algo que não tinha acontecido.

Com mais tempo nas mãos, pudemos redefinir o nosso plano para o jantar. Como tendemos para algo que seja novidade para ambos, decidimos marcar mesa no Notes Bar & Kitchen, que já me tinha passado pelo radar via Instagram e já nos tinha sido recomendado pelo nosso querido João Ribeiro.

Com duas horas antes do jantar e o carro já estacionado à frente do TAGV, descemos a pé até à zona do restaurante, onde, à chegada a Coimbra, avistara uma loja de velharias. Não havendo exposições na agenda cultural da cidade que nos cativassem, estava escolhido o nosso museu.

A Internet não está sempre certa. Da mesma forma que nos tinha enviado para a entrada errada do Jardim Botânico, dizia-nos que a loja estava aberta até às 19h quando na verdade já tinha fechado às 17h. Tinha acoplado um café-bar com a mesma identidade, felizmente aberto. As necessidades fisiológicas ditaram que entrássemos e tomássemos um café para usufruir da casa de banho.

Todos os livros a 1 euro - li à entrada. Enquanto tomava o café olhei pelas mesas e vi meia dúzia de livros repetidos que pouco chamavam por mim e uma sala com estantes recheadas de livros. As das paredes com centenas de cópias repetidas de vários livros e as centrais com livros antigos. Ao ver este cenário e ler nas paredes “compramos recheios de casas” supus que tivessem comprado o recheio de uma editora inteira. Depois de meia hora a percorrer todas as estantes, confirmámos que a maioria eram da mesma editora. Tudo com ar muito shady - livros de auto-ajuda, teologia, crime, uma série inteira sobre a aplicação do Arte da Guerra ao mundo dos negócios -, uma oferta de banha da cobra com corantes diferentes.

Uma das prateleiras estava repleta de revistas do Jamie Oliver, pareceu-me uma boa oportunidade para a nossa coleção de referências. As revistas estavam organizadas por pacotes iguais cada um com cinco edições da revista. Nada mau por cinco euros - pensei. O plástico que envolvia o bloco de cinco revistas transformava-o num item único. Um euro, por favor - disse a funcionária. Mesmo acrescentando os cinquenta cêntimos que paguei pelo café, já paguei bem mais para ir a uma casa de banho com bem menos benefícios.

Chegámos ao Notes antes da hora da abertura e, enquanto limpavam o passeio da rua em obras, fomos folheando as revistas Jamie. Ao abrir da porta, entrou-nos pelo nariz o cereal caramelizado do pão de massa mãe. A luz era acolhedora e o espaço confortável, com uma enorme estante de vinhos enquanto divisória central do espaço. De um lado, a cozinha fechada e uma zona aberta com um forno de pedra ao canto, onde antes da pandemia estava um bar. Do outro, a sala de jantar com mesas de madeira e um pequeno frigorífico de maturação encastrado, expondo cortes de carne como obras de arte futuramente servidas. As carnes maturadas são um dos pontos fortes da oferta que vão além da proposta bovina, ao contrário de muitos espaços devotos da carne. Há também espaço para o porco, nomeadamente da raça mangalitsa, para o pato e para o borrego. A oferta de vinhos é vasta, com dezenas de referências de vários produtores pequenos. Deixámos a escolha nas mãos de Luís, o proprietário. Trouxe-nos um espumante Fernando Martins, da Quinta do Cavaleiro. Uma opção todo o terreno, certeira.

Como couvert, tivemos uma manteiga produzida na casa a acompanhar o pão de massa mãe. Uma crosta sublime, sonora e suave, que não ameaçou uma visita ao dentista. O miolo muito aromático, pouco ácido e bastante húmido. Como entrada comemos o carpaccio de boi fumado, suave e cativante, e um tártaro de vaca maturada, que entrou na boca com um pontapé na porta e deixou vislumbrar o brilho ácido do seu tempero. O sotaque denunciou a nossa proveniência e num instante estávamos a trocar dicas sobre pães e restaurantes preferidos. Ao perceber o nosso entusiasmo pelo seu espaço e pelas coisas boas da vida, Luís trouxe-nos um bacalhau a baixa temperatura com jus de cogumelos e lingueirão - sensação e sabor de um surf and turf - e uma lata de vinho Defio. Sim, leram bem. Uma lata de vinho. Defio [dê-fí-ô], desafio em Esperanto, é fruto da colaboração entre Ana Sofia Oliveira e Sara Rodrigues Matos. Um clarete - um tinto fresco e de baixa coloração - de casta Baga, com o selo Nat Cool. Muito fácil e veraneante. Bebemo-lo num copo bem imponente, para tornar o momento comicamente insólito. Tirei nota mental para comprar estas latinhas na primeira oportunidade de um piquenique.

De seguida veio o principal, o mangalitsa. Num ponto rosa pastel, bem húmido, denunciava toda a sua gordura natural. Na boca revelou-se forte e adocicado. Como acompanhamento, um arroz muito aromático, tão solto quanto João Rendeiro. Os legumes estavam num ponto em que muitos portugueses os mandariam para trás acusando-os de estarem crus - perfeitos, portanto. A sobremesa foi Malaysian Mess, ou ananás picante assado com creme de côco e merengue. Não pica só lá atrás, como o empregado nos disse, pica logo à frente e bastante, mas, enquanto alunos d’O Homem Que Comia Tudo Picante, divertimo-nos. Foi uma bela forma de fechar uma refeição que nos deixou com vontade de voltar a Coimbra ainda antes de termos saído do restaurante. Surpreendente foi também o facto de termos conseguido mesa à primeira. Durante o jantar vimos várias pessoas a chegarem sem reserva e a voltarem para trás. Ouvimos ser dito ao telefone “agora só temos mesa na terça feira”, umas chamadas depois, “só temos mesa na quarta feira”. Depois de termos dado com o nariz na porta do festival e da loja de velharias, o Universo redimiu-se assegurando um cancelamento minutos antes da nossa chamada para marcar o jantar no Notes.

A quarenta minutos do espetáculo tentámos chamar uma viatura para nos levar ao TAGV. O Universo mostrou-se sensato e preocupado com a nossa linha e obrigou-nos a caminhar 20 minutos a subir. Melhor, digestão estimulada.

Catarina e a beleza de matar fascistas é uma obra que nos carimba a certeza da ameaça da extrema direita no seio da democracia. Por mim não passarão, irei à luta. Na lancheira levo uns salgados e uma lata de vinho, para ir mais leve.


Garibaldi