Hygge.

30 de Janeiro, 2022

Hygge.

Há uns anos, o meu interesse pelo desenho de luz dos espaços levou-me a descobrir o conceito de hygge, pronunciado aproximadamente como huga. Hygge é uma palavra dinamarquesa sem tradução que define um sentimento de bem estar ou aconchego. Depois de ler The Book of Hygge, percebi que havia uma filosofia que suportava a minha teoria de que luzes brancas são boas apenas para hospitais e arcas frigoríficas. Este interesse pela forma hygge de iluminar espaços levou-me aos candeeiros dinamarqueses que me abriram as portas para o design escandinavo e para a estética mid century.

Esta atração foi cimentada este mês, ao ter oportunidade de passar quatro dias em Copenhaga, uma prenda de aniversário de Anita. Tratando-se de uma das grandes capitais gastronómicas do mundo, a nossa lista de restaurantes no Google Maps somava mais de 50 locais, sabendo que nem metade dessa lista conseguiríamos riscar. Alguns desses espaços estavam fechados, tanto por ser época de inverno como por estratégia perante as restrições da pandemia, o que nos facilitou algumas escolhas nas rotas a fazer em cada um dos dias. Houve ainda tempo para lojas de design dinamarquês, como a Notre Dame ou a Illums Bolighus, onde me senti como uma criança na Disneyland. Em vez de tirar fotografias ao Mickey e restante turma, fotografei dezenas de livros e objetos de marcas que nunca tinha ouvido falar. A nossa rota gastronómica pode ser revista em reels no nosso Instagram, desde o primeiro pequeno almoço na Anderson Bakery ao menu de degustação do Selma, passando pelo momento em que almoçámos numa gasolineira. Sim, o Gasoline Grill não tem este nome apenas pelos seus hambúrgueres serem combustível para a felicidade.

Refletindo bem, a comida é o menos hygge do modo de vida dinamarquês. Por muito que tenha ficado apaixonado por smørrebrød, não é algo que me traga aquele quentinho à alma.

Esta semana, sentado à mesa na Tasquinha do Fumo, percebi quão mais hygge é a gastronomia portuguesa. Uma casa de pedra no meio da serra onde tudo é cozinhado no fogo, até o café. É tão idílico quanto soa, tirando o facto de não aceitarem multibanco e de termos de fazer um desvio de dois quilómetros para ir levantar dinheiro. Tudo é hygge naquele lugar, da meia luz da sala até ao cheirinho a brasas que se sente, sem chegar ao ponto de se entranhar na roupa. As pessoas calorosas no trato - excepto a forma evasiva como nos atendem o telefone, quando atendem. Este pormenor funciona como filtro. Os mais incautos certamente serão afastados logo via telefone, como forma de proteger o que é bom e bem feito de quem o quer de mão beijada. É um bastião da slow food, por isso não vale a pena irem lá bater à porta sem reserva prévia.

Anita veio pela promessa da cebola em vinagre tinto e acabou por se apaixonar também pelo presunto de pouca cura e pelas azeitonas de caroço pontiagudo. Já o meu momento preferido das entradas foi quando montei uma rodela de alheira na brasa por cima de broa de milho, com um toque do vinagre da cebola.

Como ligámos apenas às onze e meia, no risco de já não haver mesa ou comida para nós e ressalvando que comeríamos o que nos pusessem na mesa, o que se pode arranjar foi um cozido. Sorte minha. Pedimos um jarro pequeno de verde tinto que bebemos em canecas de cerâmica instantaneamente transformadas em obras de arte tingidas a vinhão.

Assim que o cozido chegou à mesa senti ainda melhor o que é hygge. Debaixo da travessa, no andar inferior do suporte onde vinha pousada, jaziam três generosas brasas brancas, raiadas pelo vermelho do calor. Parte da cozinha veio para a mesa para prolongar o ponto ideal da temperatura do cozido. Isto é hygge. É design de serviço e atenção ao pormenor. É também evocação de memória e emoção. O cozido era tudo aquilo que nós ainda não sabíamos que precisávamos naquele momento. E mais ainda, que pedimos para levar porque as sobremesas já nos tinham passado pela vista e queríamos deixar espaço para elas. Um leite creme bastante intenso com aquele gosto do ferro de queimar e um bolo de bolacha cujas pepitas de chocolate de adorno nos dividiram - Anita dispensava-as, ao contrário de mim que achei um toque necessário de outra textura. Com as sobremesas veio também o tal café de brasa num púcaro preto de Bisalhães e duas garrafas de licor caseiro. Um de café e um de folha de figueira. Armado em diferentona, como tantas vezes acontece, disse a Anita que não queria o de café, atraído pelo verde do outro licor. A aspereza da folha de figueira não me convenceu e lá provei a última gota do copo de licor de café de Anita. Soube-me a rebuçados daqueles que roubávamos de todos os pires da família em qualquer café nos anos noventa.

Ao experienciarmos outras culturas, acabamos por voltar com um olhar renovado sobre a nossa. Tenho pesquisado receitas do pão de centeio dinamarquês com sementes. No nosso dia a dia é comum fazermos almoços no estúdio com sandes abertas que se assemelham à ideia de smørrebrød. São refeições nutritivas e funcionais, mas pouco hygge. Hygge é o cozido da Tasquinha do Fumo que vou transformar num arroz frito para comer agora no sofá.


Garibaldi