Ontem acordei muito cedo por causa do calor e, para não despertar Garibaldi, agarrei-me silenciosa às minhas pesquisas sobre os periódicos femininos do século XX. No texto introdutório do nº 44 da Crónica feminina - culinária, Maria Helena escreveu que “o ambiente também pesa muito no sabor de um bom prato”. Fechei os olhos e respirei, procurei que a memória, o silêncio da madrugada e o cheiro a calor me ajudassem a sair do sofá e a viajar até esses lugares cujo ambiente me marcou.
Pausa para que possam fazer o mesmo.
Como saberão os leitores e leitoras mais íntimos de Anita, o meu primeiro grande desejo gastronómico deu-se em 1999 quando pensei pela primeira vez que a minha vida seria muito mais fácil se fosse um rapaz. Era Verão e o meu pai desfilava com uma taça florida meia lascada contendo pequenas cebolas embebidas em vinho tinto. Nesse dia, marcada pela brisa que corria nas escadas de mármore da casa da minha bisavó, pela sombra de uma nespereira e pelo som da água de nascente a cair no tanque, olhava em meu redor e via as mulheres (mãe, avó e bisavó) a entrançar cebolas, cada uma sentada no seu degrau. O meu pai, em pé, conversava e fazia rir a bisavó Cândida. Eu olhava para ele e pensava - quem me dera ser rapaz. A primeira vez que provei a tal iguaria já sabia que aquela exclusividade nada tinha a ver com género, apenas com gostos. E na primeira trinca daquela cebola crocante avinagrada, senti de novo a brisa, a sombra, a água a correr e a gargalhada da minha bisavó. O ambiente não são apenas quatro paredes bem decoradas, são também todos os micro acontecimentos que nos provocam sensações e reações.
Gosto de coisas bonitas e, por isso, quatro paredes bem decoradas também fazem a diferença comigo. No entanto, ver alguém tratar bem outra pessoa, ser gentil, educada, generosa, simples, é imprescindível para me arrebatar e fazer-me querer regressar. Talvez pensem que é o mínimo, eu penso na quantidade de vezes em que a forma como a chefia de sala tratou empregados/as de mesa me fez perder a vontade de comer. Ou em como observei colegas a serem deselegantes entre si e a sabotarem-se durante o serviço.
Pode ser a sala, pode ser a cozinha, os serviços são feitos por pessoas e, por isso, nem sempre corre tudo bem. O que pode salvar momentos em que as coisas descarrilam é a forma como nos relacionamos com isso. No Gazela, a proximidade com que os empregados de mesa nos abordam permite um lugar de autenticidade, de flexibilidade e de diversão. Parte da experiência de comer os cachorrinhos é o ruído de fundo das pessoas a falarem alto, o frenesim que se sente na sala ou ao balcão, a intimidade com que se conversa com quem nos pergunta se queremos mais uma dose de batatas. No Siktak, sentimos uma rudez, uma espécie de frieza crua que nos desconforta mas que se alinha de forma congruente com a narrativa necessária para o momento que ali se procura. Em menos de dois minutos já nos abordaram com a simplicidade de quem não domina a língua, já nos transportaram para um lugar distante e desconhecido e já nos sentimos em casa.
No Época, com uma disposição de mesas pouco ortodoxa, e no Manna, em que todo o espaço nos permite respirar, casa é o cheiro que se sente ao entrar. Há sempre um sorriso, uma naturalidade que nos convoca a sentirmo-nos leves, sem artifícios e confortáveis. O lugar comum aqui seria dizer que o ambiente tem mesmo boa energia.
E de todos os lugares, de todos as surpresas, de todos os clichês, o meu ambiente preferido continua a ser o sofá da nossa sala. Pratos fundos ou taças, de garfo, colher ou à mão, as pernas cruzadas e o Sol de Julho a chegar-nos por entre as brechas dos prédios da frente, a série preferida do momento e as onomatopeias que indicam que seja o que for que estamos a comer, está a saber-nos bem. Ontem, ao fechar os olhos, viajei para dois sítios: as escadas da bisavó Cândida e o sofá em que agora vos escrevo. Não fosse ainda manhã cedo e já teria no meu regaço uma taça de cebolas mergulhadas em vinho tinto. Não sou homem mas já tenho permissão para beber vinho.
Anita