Este é um drama muito maior do que parece. A minha avó sempre cozinhou bem, nunca lhe falhou o tempero, nem o requinte, nem a vontade de encher o prato a todos os meus amigos do secundário. Mas o drama que se instala no Natal é ela acreditar que as suas rabanadas são as melhores. E eu, que durante anos só comi as dela, passei a achar que o problema era meu e que talvez não gostasse de rabanadas. O problema só podia ser meu. Imaginar que a minha avó estaria a falhar na cozinha era um crime contra a História Universal das Avós que Cozinham Tudo Bem. Até ao dia em que me estreei no Euskalduna. Quando entrei, estava longe de imaginar que, em menos de três dentadas, resolveria alguns dos maiores mistérios da minha existência. Mas já lá vamos.
Há sempre uma energia poética quando juntamos avós e comida na mesma conversa. O jantar do Vasco Coelho Santos foi servido com uma poesia imensa. Desde a mistura de fumo e de mar das pataniscas de ouriço, do veludo amanteigado do folar transmontano, do aconchego e frescura da canja de galinha, do bacalhau à brás estaladiço e untuoso, do empadão simples e impressionante como a gola do atum de 300kg trazida à mesa antes de ser servida, do arroz de polvo cremoso e crocante a desfazer-se na boca e a explodir-me no peito, dos rojões e da morcela de arroz que já prometia só pelo aroma, da queijada com gelado de marmelo a saber a fruta colhida na hora à… rabanada!
Finalmente. Apenas e só. Como se não houvesse mais mundo. Como se eu ainda não estivesse satisfeita. E não estava. 29 anos a comer a rabanada da minha avó, a não querer enfrentar o infortúnio de lhe dizer a verdade, a fingir que “nem é assim tão má”, a conformar-me com a ideia de ser eu o problema, a achar que não gostava de rabanadas. Até ao dia.
O Vasco queixa-se que a sua rabanada já cansa, que as pessoas só querem aquilo. Uma mistura de ícone e maldição. Eu disse-lhe:
De certeza que a Ruth Marlene também já não suporta que lhe peçam para cantar o “pisca, pisca”. Mas sabes o que é que ela faz? Canta na mesma.
E quando ele perguntou se tinha gostado do jantar, tal como com a minha avó, faltou-me a coragem para lhe dizer a verdade. De tudo, o que mais gostei, foi a rabanada.
Continuo sem ser capaz de dizer a verdade se achar que vou magoar os outros. A rabanada do Vasco pode ser uma maldição para ele mas foi uma salvação para mim. Nunca gostei das rabanadas da minha avó.
Anita