Os aniversários são, por defeito, a deixa para os que nos rodeiam nos mostrarem o quão felizes estão por nos terem na sua vida. Tendemos a mimar aqueles de quem gostamos nos seus dias especiais e esperamos que isso aconteça no nosso também, por muito que tentemos mascarar esse desejo com o mui evitável “oh, não era preciso”. Eu não preciso, de facto, mas aprecio imenso quando o fazem. Anita sente o mesmo que eu e tem tanto prazer a receber como a oferecer. No meu último aniversário pediu-me que escolhesse um restaurante para irmos celebrar. Perante tamanha generosidade não podia ter sido mais fácil escolher: marcámos um jantar n’O Paparico.
Entrar n’O Paparico é como entrar em nossa casa numa dimensão do imaginário coletivo do portugalismo. O sofá em frente à lareira, os relógios, a madeira quente, a pedra firme, os atoalhados, o serviço de loiça, todos os elementos da decoração foram resgatados do lado mais afetivo da memória. E o trato das pessoas também. O Rui abre-nos a porta como quem está mesmo à nossa espera, com uma atitude que nos traz segurança e um carinho instantâneo pela sua casa. Devo dizer que não foi a minha primeira vez n’O Paparico. Em ambas as visitas senti que a equipa assume como missão fazer com que vivamos um momento verdadeiramente especial. É um lugar onde nos sentimos confortáveis. E não falo do conforto de chegar a casa e tirar as sapatilhas, mas sim do conforto de entrar pela porta e sentir que pertencemos ali.
Na minha primeira visita, no início de 2017, fiz o menu de degustação completo. Eu e o Pedro, o meu parceiro de trabalho de então, costumamos dizer que esse jantar nos estragou a vida. A cada garfada que levávamos à boca, parávamos e olhávamos um para o outro com incredulidade estampada nas nossas caras. Como era possível o que estávamos a comer ser tão bom, tão genuíno, tão aquilo que é? Um aperitivo de bacalhau à Brás, num formato de ladrilho de quatro centímetros de cada lado e menos de meio centímetro de altura, um creme ensanduichado entre duas finíssimas telhas, foi o bacalhau à Brás com mais sabor a bacalhau à Brás que comi na vida. Num caldo de cozido, tudo era tão cozido à portuguesa mas não cozido à portuguesa. Ou seja, um caldo de cozido à portuguesa em que tudo estava no mais perfeito ponto de cocção, com o cómico pormenor de ter uma micro cenoura, com não mais de três centímetros, que era a cenoura que mais sabia a cenoura de toda a minha vida. Ou uma simples e fina lâmina de presunto que selou esse pensamento: este jantar estragou-me a vida. A partir daquele momento, soubemos que a nossa escala de avaliação perante o que comemos tinha sido alterada e que seria muito difícil e raro sentirmos o mesmo prazer.
No dia 5 de novembro de 2020 foi a minha segunda vez. Passámos o dia a festejar e ir jantar a’O Paparico foi a epítome da celebração do meu aniversário. Anita e eu somos vaidosos, portanto, para esse jantar vestimo-nos como tal. Depois de nos sentarmos e abrirmos a carta que inaugura o momento, chegou a cortesia de boas-vindas: um ainda morno quarto de pão de massa mãe, muito aromático, manteiga com sal e a icónica esfera de Terrine de Vitela Arouquesa e Vinho do Porto. O Rui serviu-nos um Riesling Trás os Montes Projectos de 2005 da Niepoort para harmonizar com esta entrada e os petiscos seguintes. Depois de passarmos uns minutos a cheirar o pão que nem farejadores profissionais, Rui voltou à mesa e trocámos ideias sobre o tipo de vinho que gostávamos e que lhe deixámos nas suas mãos a escolha de uma garrafa para acompanhar toda a nossa refeição. Desta vez não embarcámos no menu com as escolhas do chef Rúben Santos e decidimos pedir à carta, sendo a escolha bastante difícil envolvendo um ágil debate de gostos e expectativas.
Antes de nos serem servidos os nossos pedidos chegaram dois pequenos Pastéis de Chaves e uma versão petisco de um dos pratos que tinham sido debatidos mas deixados de fora do alinhamento escolhido: uma Sopa Rica de Peixe. Duas colheradas de mergulho no mar e uma trinca num irrepreensível ravioli. Um dos grandes trunfos da equipa d’O Paparico é a sua capacidade de leitura das pessoas. O ritmo do serviço é difícil de ser explicado mas sente-se muito bem. Digamos que não é apressado nem lento, Marco e Rui aparecem mesmo antes de nos apercebermos que é o momento certo, com o atenção oportuna. Rui Melo Costa é também um escanção sensível, capaz de navegar a vasta biblioteca de vinhos d’O Paparico com o dom de nos servir algo que está perfeitamente alinhado no binómio do nosso gosto e do que faz sentido para cada prato.
Como Primeiros escolhemos o Coelho de Escabeche e a Ervilhada de Língua de Vitela. Não me vou prolongar a escrever sobre estes pratos. Eram ótimos, não me interpretem mal. Mas o que vale mesmo a pena ser trazido a este texto é a nossa escolha de Segundos: o Bacalhau à Brás e o Pernil de Porco Assado, Castanhas e Puré de Forno. O Paparico trata a cozinha portuguesa de uma forma única. O trabalho desta equipa consegue expressar a essência da portugalidade e do nosso receituário de uma forma singular. Reconhecem que o produto é estruturante mas não é tudo. O que o torna português é a forma como é trabalhado, o tempo em que é trabalhado, a temperatura a que é trabalhado e como se combinam vários produtos e várias formas de os trabalhar.
Depois de ter tido uma experiência tão estonteante com um Bacalhau à Brás do tamanho das falangetas dos meus polegares, a expectativa para uma versão prato principal estava bem alta. Adivinhem? Foi superada com um Bacalhau à Brás a dois tempos. Primeiro, uma versão altamente técnica com pil pil e telhas de pele de bacalhau crocante. De seguida, e como há quem sinta vertigens ao voar muito alto, os nossos pés são trazidos ao chão quando chega um pequeno tachinho de ferro fundido com aquele bacalhau à Brás que sabe à casa do Zé Rocha. O meu avô fazia-o como um verdadeiro militar, com a paciência para cortar as batatas fritas mais finas que umas mãos que não têm formação de alta cozinha podem cortar e com quantidades de todos os ingredientes calculadas por cabeça, o que assegurava que havia uma travessa inteira extra para o menino. Ó Pai, isso é muito, dizia a minha mãe. Deixa estar o menino que lhe está a saber bem, ripostava Zé Rocha.
O momento do Pernil de Porco trouxe uma carga teatral. É sempre cativante quando chega à mesa um tabuleiro com vários elementos. Coube ao Marco a performance de empratar. É verdade que a carne deslizava do osso mas não podemos descurar a mestria do Marco. Ah, esqueci-me de dizer que antes de o vermos já tínhamos sentido o cheirinho a fumo do pernil a entrar na sala. Portanto, até o prato estar empratado e pronto a aterrar nas nossas papilas gustativas, decorreram uns três ou quatro minutos de bruta salivação e antecipação. Surpreendentemente, o interior do pernil tinha muito menos fumo do que o que se fazia anunciar, estava absolutamente no ponto certo, a complementar o sabor natural da carne e não a funcionar como uma cortina. O puré de forno fez-nos revirar os olhos de prazer. Muito cremoso, rico e com uma camada interior de cebola caramelizada. Quero puré de batata com cebola caramelizada mais vezes na minha vida. Recentemente encomendámos o empadão do Têsto e isso deixou-me convicto que David Jesus e Sérgio Cambas tiveram este puré do pernil como barómetro de referência.
Depois de tantas granadas, bombas e outros tipos de estrondos no palato, precisávamos de um carinho refrescante. A finesse de Ana Sofia Macedo acalmou-nos com uma pré sobremesa de romã e hibisco, abrindo alas e despertando desejo pela doçura do que viria. Antes do início da refeição, debatia com Anita pedindo ajuda ao Rui em relação à sobremesa que deveríamos escolher. Na minha primeira vez n’O Paparico fiquei deslumbrado com o Ovo de Inspiração Conventual e comentei com Anita que gostava que ela experimentasse. Anita é louca por arroz doce, por isso acabámos por pedir o Arroz Doce à Convento de Santa Clara. Mais uma vez, adivinhem? O Rui, com sensibilidade e generosidade, trouxe ambas. Ficámos gratos e ainda bem que assim foi, Anita não achou assim tanta piada ao Ovo enquanto eu a tentava convencer do quão única era aquela sobremesa. Já sobre o arroz doce, foi unânime. Era tudo o que estávamos à espera e muito mais. Surpreendeu-nos um toque a uma especiaria que não chegámos a desvendar e uma presença forte de laranja em vez de limão. Parabéns a você, nesta data querida... E não é que veio outra sobremesa como bolo de aniversário? Um mil-folhas de caramelo, sublime. Anita já só olhava para mim como quem diz que não aguenta mais. Eu já só tinha o sorriso colado na cara depois de acabarmos a garrafa de Covela Escolha 2005 que Rui havia escolhido para nós e ainda um copo de Soalheiro Dócil que se tinha revelado como um vinho perfeito para as sobremesas. Ainda havíamos de ser brindados com a mestria de Ana Sofia com um petit four de maçã e pistáchio.
Senti-me verdadeiramente apaparicado no meu último aniversário. Mas o mais interessante é saber que é este o dia-a-dia n’O Paparico, onde se recebe tão bem as pessoas independentemente de ser ou não o seu aniversário e onde todos os dias são dias de celebrar o receituário e a cultura gastronómica portuguesa.
Garibaldi