Depois deste ano e meio de privações diversas há saudade em tudo. Saudades de abraçar a minha família e os meus amigos, saudades de raves suadas, seja atrás da mesa de mistura ou no meio da pista de dança, e saudades do formato original do Mito. O Pause Mito Play Burger foi uma solução altamente criativa para uma época em que o original formato de partilha estava impossibilitado e para salvaguardar a integridade da comida depois de ser transportada em caixas, muitas vezes aos solavancos. Ainda bem que foi temporário, o Pedro precisava de voltar a cozinhar e a empratar comida em pratos e o Porto precisava deste regresso.
O menu de almoço do Mito era uma das mais refrescantes propostas gastronómicas da cidade. Semana após semana, tínhamos a possibilidade de escolher entre duas entradas, quatro principais e duas sobremesas. A preocupação com os produtos da época sempre lá, aproveitando-os de variadas formas, do mais clássico ao mais inventivo, dando sempre um toque de personalidade a tudo o que saía daquela cozinha. Muitas vezes foi também terreno para testes para a carta principal, sempre muito equilibrada e cativante.
Fruto do meu trabalho como fotógrafo, as cozinhas onde passei mais tempo foram a do Fava Tonka e a do Mito e os respetivos chefs, Nuno Castro e Pedro Braga, os que mais me ensinaram sobre técnica e produto. E o que os liga não se fica por aí. São ambos exímios praticantes de uma cozinha emocional e de memória. É comum os seus pratos, cheios de criatividade, trazerem escondidos para o nosso palato gatilhos para a nossa memória coletiva, de sabores e emoções que conhecemos tão bem e que estavam numa camada mais profunda do nosso cérebro. Por último, há algo que os une mais que tudo: a manteiga. A sua cozinha é gulosa. Atenção, não estou a dizer que saem dos seus restaurantes numa maca do INEM em direção ao hospital com um AVC. Sabem muito bem equilibrar a gula e a delicadeza e as cartas dos seus restaurantes refletem isso.
O replay no Mito veio com ainda frescura e sensibilidade. E tem um nome: Mirna Gomes. A Mirna esteve no Master Chef Profissionais do Brasil, no El Cellar de Can Roca e aqui no Porto tivemos a breve oportunidade de a ter a chefiar a cozinha do Toasted, espaço que infelizmente não resistiu à pandemia. A sua cozinha respira frescura. No Toasted, a carta mudava semanalmente como se fosse um Mito em esteróides. E é nisso que o restaurante do Pedro se tornou agora com contratação de Mirna como sous chef. Um mito ainda mais mítico. O Toasted era um espaço centrado em vinhos naturais e também isso se transpôs agora para a Rua José Falcão, graças ao crescente interesse do Pedro neste tipo de vinhos. Com a identidade de Mirna, a identidade do Pedro surge ainda mais vincada e a união destes dois cérebros e quatro mãos só nos vai trazer coisas cada vez melhores.
Ontem, depois de muito tempo de trabalho sem tempo para desfrutar, tive um precioso date com Anita no Mito. Esta nova carta consegue ser ainda mais Pedro Braga com este toque de Mirna. Começámos pelo couvert, composto por pão de massa mãe, manteiga com fava tonka e banha de porco com paprika fumada - outra vez a gula a bater palmas. De seguida, um pato curado na casa que, ao derreter na nossa boca, faz-nos derreter de amores instantaneamente. Embora sejamos loucos pelos croquetes e pela bolinha de Berlim do Braga, fomos pelas novidades e seguimos com o tomate coração de boi com abacate, leche de tigre de algas e tapioca, altamente refrescante e cheio de terra e mar. Não façam como eu a montar o tomate em cima do crocante de tapioca, comam alternadamente. Os dois em simultâneo abafam-se e eu só percebi isso no fim. O tártaro de alcatra está melhor que nunca, acompanhado de um jus de carne e tutano e batatas fritas. Batatas bem fritas sabem sempre bem, mas estas são fritas em manteiga. Sim, leram bem. Não liguem já para o INEM, vêm só meia dúzia de batatas, as suficientes para nos deixar loucos mas sem coágulos no sangue. Os outros dois pratos mostraram como aqui se trabalha bem com fogo e carvão. Raiz de aipo grelhada com ervas e citrinos, acompanhada de pleurotus grelhados, gema curada, manteiga noisette e uma colherada de creme fraîche para refrescar. Por último, robalo da ria de Aveiro grelhado, acompanhado de batata nova cozida, alface do mar, caviar de algas e beurre blanc. O robalo no ponto certo, ainda húmido, com a pele bem crocante e todo ele envolto na dose certa de fumo. A batata nova cozida arrancou de nós uma reação de quem está a comer batatas que sabem mesmo a batatas. O beurre blanc foi consumido até ao limite, rapado da travessa à colherada depois de já tudo o resto ter desaparecido. Sobremesas? Vai ser o mil folhas de milho e a rabanada de pistáchio, por favor. Quanto à rabanada não há muito a dizer, não fosse o Pedro meu confrade na Confraria da Rabanada. Já o mil folhas… Surpreendente. Mil folhas de milho, amendoim caramelizado e lima. Quebrámos as telhas, levámos à boca e de repente estávamos a comer uma versão doce de Doritos Tex Mex. Não se iludam os incautos, esta sobremesa é um mundo. É possível que eu e Anita já estivéssemos bem extasiados depois da garrafa de Quinta do Javali Pet Nat Rosé, cuja cor se assemelha a rebuçados, mas acredito que se tivéssemos bebido apenas água com gás durante todo o almoço, teríamos tido a mesma reação a tudo.
Repito, o Mito é ainda mais Pedro Braga com Mirna Gomes. Espero, e acredito, que essa identidade não se anule mas que se fortaleça mutuamente. O Porto precisava deste replay no Mito. E eu precisava de matar as saudades.
Garibaldi