A nossa forma de experienciar o mundo e a sociedade é cimentada por convenções. As coisas são como são e, até alguém fazer diferente ou nos dizer que pode ser diferente, é raro questionarmos. Durante as nossas férias, deparámo-nos com um exemplo interessante de uma ruptura na convenção.
Ao fazer uma marcação num restaurante, esperamos sentar-nos à hora marcada. Esperamos também que nos apresentem a carta dos pratos disponíveis para a nossa escolha, ou, se forem como eu, já vimos a carta on-line e já estamos absolutamente decididos no que nos desperta desejo. Quando Anita ligou para a Toca do Texugo, no dia anterior àquele em que planeávamos ir, do outro lado da linha pediram que voltássemos a ligar no dia seguinte a partir das 10 horas da manhã, afirmando que só aí saberiam o peixe disponível para o dia. Nenhuma surpresa até então. Quarenta minutos passavam da hora a que nos pediram para voltar a ligar e, do outro lado, ouvimos a lista de peixes acabados de chegar. Anita estava há semanas a proclamar o seu desejo por lulas, por isso escolhemos as duas versões disponíveis: grelhadas e em espetada. “Pode ser para as 13h?”, questionou. E ao ouvirmos a resposta, foi como se surgisse um holograma meu a fazer aquele gesto de explosão à volta da cabeça.
Na Toca do Texugo não se reserva mesa, reserva-se o produto. Ao chegarmo é-nos dada uma senha em troca do nosso nome. Se houver mesa disponível entramos, senão, esperamos com a garantia de que o nosso almoço está assegurado. Amigos restauradores, esta é a chave para a máxima rotação de mesas, dando aos interessados a salvaguarda de além de saberem que não batem com o nariz na porta, poderem escolher de antemão o que vão comer, sem surpresas. Quem não tem reserva, além de se sujeitar à espera, sujeita-se a um leque de possibilidades mais pequeno. Todos saem a ganhar. Ou, pelo menos, todos os verdadeiramente interessados.
Chegados ao local recebemos a nossa senha e, por sorte, tínhamos uma mesa para dois disponível. Pouco faltava para a uma da tarde e as várias salas já estavam praticamente cheias. Ficámos logo na primeira, uma espécie de esplanada interior coberta. Ingénuos que por vezes somos, pedimos a carta de vinho. As poucas referências que havia não nos cativaram e achámos que o mais indicado seria, dado o ambiente e contexto, pedir um jarro de vinho de pressão. Já não bebia vinho de pressão há anos e fiquei genuinamente a pensar se este teria glutamato de sódio adicionado, dado o seu estranho toque de umami. Depois de um pãozinho e umas azeitonas, chegaram as nossas lulas. A espetada, servida num prático suporte vertical, e as outras, numa travessa clássica de inox, bem bonitas e gordas, a deixarem-se adivinhar recheadas. Como acompanhamento, tínhamos uma salada de pimentos assados, uma salada mista - com pouca cebola para desgosto de Anita - e um pequeno tacho de ferro com batatas cozidas. Tudo absolutamente no ponto. Como é possível uma só pessoa tomar conta de um grelhador de quatro metros com vários produtos diferentes e ter este ponto? É precisa uma capacidade de atenção equiparável à necessária para fazer controlo de tráfego aéreo. As lulas vinham acompanhadas de molho à espanhola, que depois do teste do sabor e de uma rápida consulta viemos a confirmar que era azeite fervido com cebola, salsa, pimentão doce e um toque de vinagre. As lulas grelhadas, as fora da espetada portanto, vinham recheadas com os seus tentáculos e, presumo que também, com os tentáculos das suas familiares do espeto, tal era o volume. Tudo cozinhado al dente, por meio do vapor resultante do calor e de estar encapsulado dentro da lula mor. Anita estava finalmente consolada do seu desejo por cefalópodes. Para rematar, a minha amada foi pelos clássicos ao pedir um molotof, enquanto eu pedi uma mousse de requeijão e morango, algo que me soava fresco e leve. Não o era. Acabou por saber a algo como uma interessante baba de camelo com o sabor a morango como fim de boca.
Quadros temáticos de fado, famílias divididas entre mesa de adultos e mesa de crianças e velhotas que caem ao chão pela teimosia em se sentarem na ponta de bancos corridos. Este restaurante confirmou-nos que a boa restauração faz-se do bem receber e do bem servir. No fim da nossa refeição fomos ainda visitados pelo dono, um simpático idoso, que veio indagar se tudo tinha sido do nosso agrado. É este sentido de tato e hospitalidade que permite pensar em formas diferentes de rentabilizar as mesas do seu restaurante e manter a clientela feliz.
Garibaldi