Só podíamos ser um casal.

5 de Fevereiro, 2021

Só podíamos ser um casal.

Chegámos ontem a São Miguel e hoje decidimos terminar o dia no Bar da Caloura. O meu casaco corta-vento não faz frente ao anoitecer ventoso que se pôs na esplanada. Acabámos de pedir uns camarões ao alho e, assim que os sinto a chegarem à mesa, recordo-me de como este prato me fez apaixonar pelo Garibaldi.  

Ao início eu achava-o chato e fundamentalista (ainda acho). Ele indignava-se com a minha anarquia culinária (ainda se indigna).

- Mas porque raio é que eu não posso chamar molho de francesinha ao molho de tomate estupidamente suculento que eu faço para as nossas francesinhas caseiras? - perguntava eu, irritadíssima.

- Porque isso é um molho de tomate estupidamente suculento e não um molho de francesinha. - ripostava ele.

Enquanto um perdia a paciência, a outra perdia a esperança. Cheguei a pensar se o nosso amor resistiria a tanto conflito culinário. As três primeiras grandes discussões que tivemos começaram na cozinha a picar cebolas e acabaram só depois da loiça estar na máquina. Eu só queria inventar e experimentar, ele queria seguir o protocolo e respeitar a tradição. Ele, meticuloso e rigoroso, com muito respeito e amor pela comida. Eu, aventureira e exploradora, com muita paixão e poucas regras na cozinha.

No dia em que estava prestes a propor cozinharmos e comermos em escalas alternadas, decidimos ir jantar camarões, juntos, pela primeira vez.

Quem gosta de camarões sabe que só há uma forma de os comer. Com um prato à frente, o meu lado metódico assume o comando, enquanto ele permite que o caos se instale até o último pedaço de pão rapar o prato. Eu consigo gerir cada ingrediente para terminar com a garfada perfeita. Ele sorve o prato de forma veloz para que a degustação se faça de boca cheia.

Assim que os camarões pousaram na mesa desapareceram as regras e os conflitos. Cada um com o seu método, mais ou menos organizado, levámos os camarões à boca, retirámos-lhes o miolo (eu de forma cirúrgica e ágil, ele de forma sonora e animal) e separámos a cabeça como se guardássemos ali o coração da refeição. Entre cada interjeição de prazer, sugávamos as cascas e olhávamos um para o outro sabendo exactamente o que estava a ser dito no silêncio.

Hoje, enquanto o mar bate nas escarpas deste bar de São Miguel, voltamos a olhar-nos e, rompendo o silêncio, soltamos uma gargalhada em uníssono. O rigor gastronómico do Garibaldi é proporcional à minha perícia a descascar um camarão, bem como a minha abordagem anárquica à cozinha se equipara à sua forma de comer. Hoje, elegemos os “camarões ao alho” como o prato da paz para esta relação. Onde houver comida, há esperança para o amor.


Anita