São 2h20 e acordei sobressaltada. Sonhei que me perguntavam pelo meu avô e eu, para fugir à resposta, acendia um cigarro.
Não sei se foram as saudades do meu avô, os pensamentos que me assolaram em avalanche ou o apetite por um cigarro, mas saí da cama e vim sentar-me a escrever.
Há perguntas que nos fazem sentir sozinhas e memórias que nos devolvem a companhia. O meu avô ensinou-me a comer. A comer de guardanapo no colo, a deixar os pratos limpos, a comer com a boca fechada e a descascar fruta com cerimónia. De faca afiada e garfo em punho, descascava laranjas, bananas e maçãs como quem presta uma cirurgia rigorosa. Para o meu avô, comer merecia tempo, pompa e solenidade - como os livros que líamos um ao outro em voz alta.
Quando era miúda, punha um pijama na mochila e pedia-lhe que me fosse buscar para passarmos o fim de semana juntos. Ansiava vê-lo junto ao seu fogareiro de latão, um bidão cortado ao meio e disposto sobre uns tijolos, a grelhar o melhor peixe que comi em toda a minha vida. É sempre assim, não é? As pessoas são como a comida que fazem - irrepetíveis.
- A comida não se faz por correspondência, é como na guerra, não se pode abandonar o posto. - dizia-me enquanto me pedia que fosse avisar a minha avó e buscar uma travessa.
Não sei que peixe comíamos. Sei que a pele formava uma crosta crocante por fora enquanto as lascas se soltavam macias por dentro. Veludo em forma de peixe a dançar ao lado do feijão verde cozido e finamente cortado em tiras longas. As batatas mais batatas que alguma vez comi eram regadas com um azeite do qual não havia réplica. Pelo menos até há um ano, em que encontrei de novo o sabor do azeite do qual tinha memória. O azeite caseiro de um amigo cuja identidade não posso revelar por puro egoísmo oleífero.
Talvez se hoje almoçássemos juntos, a imagem idílica que construí dele - homem progressista, corajoso e defensor da liberdade - precisasse de um ligeiro reajuste. Hoje, talvez lhe dissesse que havia algo de contraditório em ter estado na frente da revolução contra a ditadura e na sua própria casa ser ele o único a ditar as regras. Mas isso seria se o tempo voltasse atrás e eu pudesse comer de novo aquele peixe.
Das buscas mais infrutíferas da vida é a de procurar replicar estes sabores tão detalhadamente gravados em memórias. Mas, pelo que sei, não estou sozinha nesta demanda sem frutos.
Já não há avô. Mas enquanto houver peixe do bom, enquanto o grelharmos como quem atenta na respiração de um recém-nascido, enquanto houver batatas a saber a batatas e azeite de um amigo secreto, haverá memória e haverá amor.
Já não estou sobressaltada. Continuo sem sono mas estou em paz. Se calhar vou comer qualquer coisa e tentar de novo adormecer. Se calhar durmo melhor depois de um pedaço de pão mergulhado naquele azeite.
Desta vez vim escrever para pensar, talvez para compensar um vazio qualquer. Estivéssemos em Março de 2020 e teria ido à varanda fumar um cigarro.
Anita