Uma sardinha para cinco.

7 de Março, 2021

Uma sardinha para cinco.

Acredito piamente que a cultura gastronómica da generalidade dos portugueses ainda é afetada pelo vulto da ditadura que se viveu até 1974.

É comum ouvirmos pais, avós e bisavós a falarem da sardinha que dava para cinco. Essa pobreza e escassez de alimento marcou profundamente várias gerações e ainda não ultrapassámos esse trauma.

O 25 de Abril trouxe liberdade, os anos vindouros trouxeram mais poder de compra e toda a gente queria e podia comer bife à vontade. Coma-se bife! Além deste ato de afirmação de querer e poder comer muita coisa que antes nunca se pôde, a globalização trouxe ainda a vontade e a possibilidade de comer coisas que não sabíamos que existiam. Esta fome de novidade bloqueou o curso natural da passagem de sabedoria e tradição oral e cultural entre gerações. Isto fez com que muitos hábitos e tradições gastronómicas desaparecessem ao mesmo ritmo que o espaço ocupado pela proteína animal no nosso prato aumentava.

Hoje em dia sabe-se que a exploração agropecuária intensiva é uma das principais causas de desgaste do nosso planeta. Admito que sempre tive uma implicância com o veganismo no geral e com os vegans em particular. Sinto bastante resistência à ideia de que não devemos matar animais para os comer. Por outro lado, acredito que devem ser bem tratados. Para os vegans, não os matar é condição sine qua non para os tratar bem. Para mim, e com uma dose generosa de egoísmo, quanto melhor eles forem tratados, melhor me vão saber. Não me importo de pagar mais por um animal que viveu ao ar livre, com espaço e com tudo o que lhe é natural. Não me importo tampouco com o facto de não comer proteína animal todos os dias da semana. Em boa verdade, o nosso corpo também não precisa da quantidade de proteína animal que lhe damos, a História prova-o.

Tendo tudo isto em conta, falta uma reeducação em dois sentidos. Por um lado, questionar ao nutricionismo* e à ideia de que todos os nossos pratos precisam de ter um balanço preciso de macronutrientes. Não há uma dieta ideal, há vários povos cujas dietas diferem muito e que são igualmente saudáveis. O que une essas dietas é o facto de os alimentos consumidos não virem embalados. Por outro lado, percebermos que é absolutamente necessário que se produza menos carne. Para se produzir menos carne, é preciso comer menos carne.

O lado que fecha o triângulo da Santíssima Trindade do consumo consciente de proteína animal é o ego. O nosso ego, ferido da impossibilidade de comer algo, continua a vingar-se da privação. Inconscientemente, ainda sentimos que devemos comer carne ou peixe a todas as refeições simplesmente porque já podemos, já temos essa capacidade financeira. E esta é a questão que nunca ouvi a ser trazida para a discussão do consumo mais consciente de proteína animal. Há que usar o nosso passado como ferramenta de reflexão para o nosso futuro.

Quando trouxermos isto à consciência e ajudarmos várias gerações a ultrapassar esse trauma em conjunto, vamos ser ainda mais felizes à mesa. Vamos poder olhar com mais fascínio para legumes e frutas. Vamos poder viver a sazonalidade dos alimentos com plenitude. Vamos poder olhar para um prato de batatas cozidas e couve sem nos questionarmos onde está o bacalhau.

* Termo introduzido por Gyogy Scrinis, sugere a noção de uma ideologia ou crença que apregoa que o que é importante na comida que comemos é a soma dos seus macronutrientes, que a ciência sabe exatamente quais são e que devemos formular a nossa alimentação com base nas recomendações de consumo desses macronutrientes.

Garibaldi