Parti do jornalismo e cheguei à cozinha há pouco mais de dez anos. Pelo caminho tenho assistido a vários tipos de relatos e notícias de mudança na indústria. Está a ser escrita a história do progresso no reconhecimento das presenças femininas no panorama da gastronomia nacional. Contudo, parece-me que, os autores desta narrativa continuam a ser maioritariamente masculinos. Consequentemente, esta história vai sendo escrita não por quem a protagoniza, mas por quem, tão generosamente, permite que ela exista. Agradecendo profundamente o espaço que me é dado, venho pedir mais inclusão na escrita, nomenclaturas mais abrangentes, mais inclusivas.
Solicito a contribuição de mais mãos na construção desta história.
Gostaria que, enquanto comunidade mais do que indústria, conseguíssemos arrepiar caminho rumo à igualdade e à pluralidade. Sugiro que comecemos pelos nomes que damos aos certames que nos celebram, às associações que nos representam, aos fóruns onde queremos estar.
Nas regras básicas da língua portuguesa a concordância é feita maioritariamente no masculino. Dois géneros presentes na mesma frase serão classificados de forma masculina plural. Que isto não seja entendido como discurso machista, é apenas uma regra gramatical, com as devidas exceções. Contudo, não posso deixar de pensar que linguagem e pensamento surgem juntos no cérebro. O nome que atribuímos a um objeto condiciona o significado que este tem, condiciona a nossa perceção sobre o mesmo. Logo, se optarmos por nomenclaturas mais amplas e menos exclusivas, ou nomes que não privilegiem a forma masculina, podemos percecionar os objetos em questão como sendo mais inclusivos. Esta questão não se esgota no género, inclui categorização nacionalista ou de estrato económico.
Os nomes institucionais formulados no masculino não excluem ninguém mas também não incluem todas as pessoas que poderiam.
Pessoalmente, sinto-me muitas vezes excluída de lugares onde as mulheres estão bem representadas, onde as cozinheiras têm voz.
Não porque não me sinta bem-vinda ou ouvida. Apenas porque o guarda-chuva que nos abriga é pequeno para todas e todos. Ser mais neutro e plural na escolha dos nomes não constitui grande alteração no formato mas representa uma enorme mudança no conteúdo. A linguagem importa. O nome das coisas importa e, em parte, molda a forma como olhamos para elas, para as instituições, neste caso.
Se estamos muito melhor do que estávamos há dez anos, do que há 50? Pois claro que sim. Se se tem feito um progresso incrível no reconhecimento das chefs de cozinha, como das produtoras, como das guardiãs das técnicas antigas e das influências internacionais? Claro que sim. Como aliás da gastronomia, no geral. A minha vénia aos que contribuem para este enaltecimento em Portugal, sejam chefs ou ajudantes, jornalistas ou especialistas. Puxando a brasa à minha sardinha, é um facto que as cozinheiras têm tido mais destaque, mais nome, mais exposição. E ainda bem, não esperaria menos. Todas sabemos a quem agradecer: a nós próprias que ocupamos todas as nesgas de espaço que nos dão. Obviamente, agradecemos primeiro a quem nos dá esse espaço, a quem luta pela divisão mais equitativa da atenção pública, a quem nos respeita. Contudo, creio que poderíamos fazer mais, muito mais.
Existe, por exemplo, a possibilidade de mudar o nome da associação que legalmente representa os profissionais de cozinha e que está descrito no masculino? Podemos aproveitar a oportunidade cada vez que uma mulher vence um prémio ou um concurso, num cenário cujos nome e história são predominantemente masculinos, para mudar isso mesmo? Estamos nós cozinheiras completamente representadas e integradas? Cada vez que o nome não condiz com a massa que me representa sinto-me excluída. Sinto que nos excluem a todas da brincadeira dos rapazes. Ainda que nos deixem participar, não nos acolhem. E tudo por causa do nome.
Estou a exagerar, bem sei. Por isso vos rogo: basta de ostracizar as personalidades femininas e não-binárias no ambiente da cozinha profissional, em Portugal, em contextos perto ou longe dos fogões. Basta de tomar a cozinha pelos cozinheiros.
Basta de dificultar o caminho da evolução presente com tiques do passado.
Pessoalmente, não acredito que os lugares de fala sejam feitos exclusivamente por ou para profissionais do género masculino. Sei que não são. Então por que me custam tanto estes nomes? Porque excluem todas as pessoas que não sejam “os cozinheiros” e isto entristece-me profundamente. Deita por terra todo o esforço que algumas instituições têm feito em trazer profissionais não masculinos para a ribalta. É contraproducente e pouco atualizado. Acredito que seja possível escolher nomes mais inclusivos e agregadores. As instituições são também e sobretudo as pessoas que as fazem. Os nomes que têm vão evoluindo para melhor acolherem a mudança e para que as próprias possam progredir no seu propósito e missão.
Esta minha visão exigente é alimentada pela evolução a que tenho assistido. Sou testemunha que a cozinha, enquanto instituição, não é dos cozinheiros, nem dos seus chefs. A cozinha é de todas as pessoas que trabalham na indústria. É de todos os que trabalham na copa, na limpeza, no desenvolvimento e fornecimento de produto, é dos que produzem, transformam e é dos que comem; é dos pasteleiros e dos profissionais de bar. Que presunção a nossa achar que a cozinha é dos cozinheiros. Não é. E se nesta descrição do que é a cozinha usei sempre o masculino foi uma escolha deliberada de usar o plural. Que é exatamente o que a cozinha é: uma pluralidade de pessoas a trabalharem para satisfazer o outro e a si próprias. A cozinha não é dos cozinheiros, é de todas as pessoas que nela trabalham, sejam homens ou não.
Vejo e enalteço o esforço que está a ser feito por várias entidades em trazer as mulheres para fora das suas cozinhas diretamente para os escaparates do sucesso. Agradeço que sigamos a lógica das quotas de participação e que se faça discriminação positiva. Duas estratégias extremamente necessárias até deixarem de fazer sentido, até que se esgotem em si próprias. Até lá, até chegarmos a um momento nesta história onde não sejam precisas quotas, imploro mais porque sei que conseguimos fazer melhor. Mais esforço, mais participação, mais reconhecimento. Não só das cozinheiras, não só das chefs mas de todas as pessoas que fazem parte desta indústria e que não cabem debaixo do guarda-chuva “dos cozinheiros”. Podem ser as proprietárias, as agricultoras, as copeiras, as gestoras, as pasteleiras, as peixeiras e as talhantes, as padeiras, as empregadas de mesa, as baristas, as especialistas. Peço que atualizemos os nomes das instituições para versões mais vastas. Nunca esquecendo tudo o que foi feito até aqui, nem desonrando o esforço coletivo e individual de várias pessoas para que o panorama mude, eu peço mais, com a consciência de que peço muito. Mas estarei a pedir demais?
Liliana Guimarães
Cozinheira formada pela EHTPorto
Padeira e proprietária Trindade Pão Artesanal
texto cedido pela autora e previamente publicado em Serpins Magazine - a revista da Música Portuguesa a Gostar dela Própria - edição Mulheres nº3 setembro 2023